Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo coronavírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O robô Perseverança aterrou no Planeta Vermelho. Infelizmente, o robô Bom Senso ainda não chegou à Terra. Nesta semana, o rapper Pablo Hasél foi condenado a nove meses de prisão em Espanha por coisas que disse e 30 mil portugueses querem deportar o ativista Mamadou Ba, por não concordarem com ele. Curiosamente, é a ala política que mais vende o direito ao “politicamente incorreto” quem mais defende a penalização de quem é politicamente incorreto, quando o dito não lhe agrada. Sem uma aposta séria na educação para o pluralismo no debate cívico, que se oponha ao ruído do fanatismo, seremos cronicamente incapazes de lidar, todos, com uma sociedade livre, democrática e saudável.
Ao fim dos “sete minutos de terror” – a fase mais delicada da sua viagem -, o robô Perseverance, da NASA, aterrou em Marte, na cratera Jezero. Os cientistas consideram que, em tempos, existiu um delta e um lago nessa cratera – onde o robô poderia, aliás, ter-se refrescado, se lá tivesse aterrado há mil milhões de anos. Atrasou-se. Este que já é o maior e o mais pesado autómato enviado para o espaço passou dos 20 mil km/h aos zero, em sete minutos. Depois, como bom filho, enviou fotografias do seu destino de Erasmus. As informações que recolher chegarão à Terra em 2031.
No Planeta Azul, a Humanidade persiste na luta contra o inimigo invisível. O progresso da vacinação contra a covid-19 tem exposto um sistema global profundamente injusto, com um pequeno número de países ricos a monopolizar a maior fatia das vacinas e os laboratórios a não abrir mão das patentes. É triste. A União Europeia enfrenta o enorme desafio de cumprir o plano comunitário de vacinação. Portugal mantém-se à frente da média europeia nas vacinas administradas por mil habitantes, apesar dos percalços. Este facto contraria a narrativa da tal fação minoritária, sempre empenhada em espalhar a sensação de que tudo nos corre mal e de que é tudo uma vergonha. O mais provável é que lhes passe pela cabeça deportar-me depois desta.
Mas não passa. A petição para “Expulsar Mamadou Ba de Portugal” é um manifesto racista e, portanto, ninguém com a minha aparência está sujeito ao mesmo grau de brutalidade. Como Mamadou Ba, Vasco Lourenço chamou várias vezes a atenção para os crimes de guerra de Marcelino da Mata, a alavanca desta polémica, acrescentando que seria uma “enorme vergonha” nacional promovê-lo como herói. Mas ninguém propôs deportar Vasco Lourenço. Várias figuras criticaram Marcelino da Mata com fervor em praça pública, mas ninguém sugeriu deportá-las. Se é triste, passado meio século, não estarmos prontos para falar da Guerra Colonial, a maior prova de que precisamos de debatê-la com urgência é que ainda há quem sugira enviar cidadãos portugueses “para a sua terra”.
Há mais do que um prisma de análise nesta questão. Sugerir deportar alguém pelas suas opiniões é ir contra os princípios básicos da civilização moderna: a Liberdade de Expressão e a Liberdade de Opinião. Este ponto une a petição contra Mamadou Ba e a condenação de Pablo Hasél em Espanha, que seguirá para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos em Estrasburgo e provavelmente resultará em sanções. Isso é (quase) consensual. Mas a petição que apela ao voto da Assembleia da República “pela expulsão de alguém que não se sente bem em Portugal, nem com a nossa cultura e valores!” é mais do que um atentado à Liberdade de Expressão. É racismo. E constatar esse facto não é concordar com Mamadou Ba, nem gostar de Mamadou Ba. É reconhecer o óbvio. Mais: chamar a atenção para o racismo, quando é racismo, não é alinhar com “extremos”, nem “polarizar” opinião. Tratar o caso como sendo uma mera questão de Liberdade de Expressão é não ver, ou não querer ver, a maior violência desta petição.
Portugal precisa de falar sobre a sua História. De todas as polémicas, as ligadas ao passado comum suscitam sempre maior alvoroço. Padre António Vieira, Padrão dos Descobrimentos, brasões da Praça do Império, Guerra Colonial. Arrumar a complexidade da História em narrativas unilaterais, pouco debatidas, pode ser um reflexo natural na lida com os horrores de um passado demasiado recente, mas deixa por resolver questões profundas. A pulsão para apagarmos tudo aquilo de que nos custa falar deixa-nos frágeis, susceptíveis, arrastando feridas em aberto, adiando tabus que se agigantam. Precisamos de falar. Precisamos de falar do império, da ditadura, da guerra, das colónias. Precisamos de falar de política, de democracia, de ativismo e de causas. O debate terá de acontecer longe dos tabloides histriónicos, dos políticos aproveitadores, dos oportunistas e dos malabaristas da opinião pública. Precisamos de silêncio, para falar e ouvir. Esse diálogo precisará de historiadores, psicólogos, professores, antropólogos, sociólogos, mas será, acima de tudo, o palco das pessoas, das suas histórias e dos seus sentimentos.
Até lá, continuaremos a atropelar-nos como que falando línguas diferentes, continuaremos a magoar-nos, habitantes do mesmo espaço, tocando em feridas abertas. Continuaremos a ter quem proponha deportar pessoas, e depois teremos pessoas para deportar essas pessoas, e pessoas para deportar essas pessoas.