Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Votar é celebrar. Por muito que o vírus pareça empenhado em suspender a democracia, o dia de eleições é sempre dia de festa – e não deixa de ser porque alguém abusou da expressão “festa da democracia” no domingo passado. Se é lamentável que os portugueses no estrangeiro tenham visto o seu direito ao voto atrapalhado, como são lamentáveis as dificuldades inéditas a que a pandemia nos sujeitou, votar é honrar, atacar e defender. Entrar na cabine de caneta em riste e marcar o boletim, exercendo o direito ao voto, é participar na mais nobre luta de que há memória: a luta dos nossos avós pela liberdade. É o momento em que a nossa cidadania, por mais imperfeita que seja, se faz ouvir de um modo perfeito: igual, livre e verdadeiro. Mais perfeito? Difícil. Dentro da cabine, somos fiéis às nossas convicções e apenas às nossas convicções. Nós somos nós. E quando saímos de lá, nós somos todos. A democracia é assim.
À data da publicação desta crónica, já sabemos o resultado das presidenciais. No momento em que a escrevo, ainda não. De acordo com as últimas sondagens, prevê-se uma vitória folgada para Marcelo Rebelo de Sousa, mas até à contagem dos votos é vindima.
O fantasma da abstenção assombra as eleições mais estranhas da História Moderna portuguesa, num momento negro da pandemia, talvez o mais negro de sempre, onde o medo obscurece o imaginário das pessoas, a frustração ferve e os sistemas de voto falham na chegada aos emigrantes. Mais: há eleitores presos em casa pelo vírus e há a chuvinha, que, em Portugal, desmobiliza mais do que na Bélgica. Se a abstenção atinge, num quadro normal, valores preocupantes, é de acender velas aos santinhos para que os bravos lusitanos se desloquem às urnas. A avaliar pelo ambiente vivido nos locais de voto, tudo indica que não será tão mau como parece. A mobilização democrática parece estar de boa saúde, apesar de tudo.
A efervescência sente-se à boca das urnas. No País, o cenário é profundamente delicado, os ânimos estão ao rubro e seria de estranhar que não fosse assim. A pandemia, a exaustão geral e a crise económica formam a tempestade perfeita, facilitando a vida às fações oportunistas do xadrez político, que surfam as ondas da confusão e do desalento. Se, até à data, as sondagens apontam para uma derrota esmagadora dessas forças, dando sinais animadores sobre a solidez da democracia portuguesa, é de concluir que a gigantesca maioria do país não compra a banha da cobra das propostas extremistas. Nem nos momentos de desespero, e perante a novidade, onde seria natural haver mais suscetibilidade. Não compra. A união das propostas democráticas, de esquerda e de direita, em defesa dos mínimos da decência, mostrou-se, portanto, eficaz e deve ser mantida e reforçada. Se não sabemos que xadrez político nos espera nos tempos vindouros, esta já é uma conclusão clara do momento eleitoral.
A democracia portuguesa está sob duas ameaças: a pandemia e o populismo aldrabão. Nos dois casos, o antídoto passa pelo nosso boletim de voto, entregue em mãos por quem tanto lutou para que pudéssemos votar. Votar é, no fundo, tranquilizar a nossa consciência. Atrás da cabine de voto, votamos como assobiamos (ou cantarolamos) para nós próprios, quando estamos sozinhos. E depois seguimos, mais leves e mais livres.