Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Estamos cansados. Ao fim de meses que parecem anos, olhamos com estranha nostalgia para as fotografias do Verão passado. Não estava tudo bem no Verão passado, claro, mas os álbuns de eras longínquas têm o poder de suavizar os males de outros tempos. Não era tudo como queríamos, mas tínhamos encontros, noitadas e os festivais para purgarmos infortúnios. Tínhamos a família e os amigalhaços, a sempre fugaz folga e o escape com os nossos amores para extravasar, como era apenas justo, conforme Pacman escreveu nos seus tempos áureos. “É apenas justo que possa extravasar da maneira que me der na real gana / desde que não prejudique terceiros / e não dê nenhuma cana”. Seria apenas justo e hoje mais do que nunca. Infelizmente, as nossas ganas não valem tanto neste contexto, amestradas como leões. Em nome da responsabilidade, que é obrigação de cada um, há quem esteja pronto para acabar com tudo o que é vida – a descontração, o ócio, a diversão – esquecendo-se de que estas são esferas tão essenciais à saúde como qualquer outra recomendação da DGS. Temos regras a cumprir em nome da segurança de todos, mas é fundamental não deixarmos que o fetiche autoritário de uma minoria moralista nos condicione a liberdade e a saúde mental.
As pessoas estão em pânico. A História diz-nos que o desejo por controlo é natural em época de medo, mas também devíamos ter certo que o resultado é amiúde perigoso. Com todas as críticas que a nossa Assembleia da República merece, todos os dias acendo uma velinha a São Bento por nos ter poupado à autocracia vigilante instalada noutros regimes, como a Hungria ou a Polónia, que aproveitaram a pandemia para concretizar algumas das mais negras profecias de Orwell. É chocante constatar que a liberdade é um valor tão secundário na mente dos povos quando têm medo. Por cá, num equilíbrio imperfeito, todavia precioso, o esforço político é evidente na tentativa de que naveguemos algures entre a negligência criminosa trumpiana-bolsonarista e o controlo repressivo dos novos ditadores. Equilíbrio. Temos seguido, apesar de tudo, numa casquinha de noz democrática e decente no que toca às liberdades das pessoas. Ainda assim, a crise não será mais fácil de gerir no presente-futuro. É tempo de garantir que seguimos caminho conservando o bom senso.
As multas. Depois de meses de sensibilização e recomendações, o cenário mudou no momento em que o Governo instituiu o quadro legal com coimas para quem violar as regras de combate à pandemia. Faz sentido que o quadro exista nesta fase? Talvez. Por esta altura, todos estamos cientes de como minorar o risco de contágio e é importante que o quadro exista, no sentido de conter a propagação do vírus. Prevenir ajuntamentos descontrolados faz sentido, por exemplo, como é lógico fazer por garantir que toda a gente usa máscara nos transportes públicos. Porém, a questão não está na existência, ou não, de multas, mas sim no teor das regras. Isto é: se algumas têm nexo, como o limite do número de pessoas em ajuntamentos, outras, como a proibição da venda de álcool nos supermercados a partir das oito da noite, parecem mais ser o reflexo daquilo que alguém achou bem, sim senhora, do que o resultado de uma decisão sustentada em critérios de saúde. E isso é inaceitável.
A Lei Seca. Toda a gente tem um tio ou uma tia – ele muito bruto e frustrado, ela muito casta e austera – que acredita, desde o início da pandemia, que isto é tudo uma vergonha: é uma vergonha ir à praia, é uma vergonha celebrar uma data, é uma vergonha estarmos alegres, ver os amigos e por aí fora. Toda a gente conhece alguém assim. Essa pessoa, que todos estamos a visualizar neste momento, acha muito bem que os bares fechem todos, como achou muito bem que se vedasse o acesso às praias, como acha muito bem que as bombas de gasolina não possam vender nada a não ser gasolina. “Vão lá fazer o quê? Comprar tabaco, com o vírus aí à solta?” Essa pobre alma, que habitualmente grita mais do que pensa, não tem noção de que as consequências de seguirmos a histeria do acaba-se-já-com-tudo são catastróficas do ponto de vista social e económico. Por conta dela, envolvia-se toda a gente em papel celofane contra uma cadeira ao longo de um ano, em casa, à espera que o bicho se fosse embora. Isso é que era. Felizmente, essas pessoas não fazem lei. Porém, há qualquer coisa do seu espírito nas restrições que dizem respeito à vida nocturna.
Qual é a base científica para, por exemplo, proibir a venda de álcool a partir das oito da noite? Haverá uma relação entre comprar a garrafa de vinho antes das 19:59 ou dois minutos mais tarde e a propagação do vírus? Custa-me a crer. Então e se precisar de vinho branco para umas amêijoas à Bulhão Pato? Telefono ao Al Capone? A Lei Seca faz este ano 100 anos. Será esta a celebração do centenário? Não se compreende. Não se compreende que, num momento em que os bares e restaurantes estão a falir às centenas, os proíbam de me vender uma imperial, em plena segurança, que poderia ajudar às suas contas. Não se compreende que condenem os espaços de restauração à falência, promovendo o desemprego, as contas públicas à miséria, sustentando lay-offs de sítios que podiam estar a funcionar, mantendo-os fechados quando estão abertos há semanas em vários países europeus, em vez de lhes entregar o ónus de garantir o serviço em condições adequadas. Gostava de acreditar que não há nas novas regras alguma interferência da moral e dos bons costumes, mas não está fácil.
Se a lei quer ser respeitada, tem de se dar ao respeito. Há dias, chegaram-nos relatos de polícias nos bairros à caça de jovens para multar, por estarem a beber cerveja na rua. Que Estado de perseguição é este? Isto é combater o vírus? Regressamos ao mesmo: equilíbrio e bom senso. Portugal começou por conseguir lidar com o problema sensatamente e é basilar que assim continue. Face a um vírus invisível, a receita será sempre a ciência, a lógica e nunca o moralismo bacoco.