Há uma grande diferença entre Muhammad Ali e os ídolos do desporto. É esta: Muhammad Ali não foi apenas um herói do desporto, e é isso que o distingue, na memória coletiva do planeta, de Michael Jordan, de Pelé, de Ayrton Senna, de Maradona, de Michael Phelps, de Cruijff, de Carl Lewis ou de Eusébio.
Mesmo no auge da sua carreira atlética – ou, sobretudo, durante ela – Ali foi sempre, antes de tudo, uma personalidade forte no corpo de um desportista de elite. Um homem com condições físicas fora do comum, mas com uma mente que lhe permitia ter opiniões vincadas – e absolutamente focadas – sobre os adversários e o seu desporto, mas também sobre a vida, a religião, a raça, a política, a humanidade.
Reduzir Muhammad Ali ao estatuto de desportista é o mesmo que dizer que Nelson Mandela foi apenas um político sul-africano. Ambos foram, como sabemos, muito mais do que isso. Ambos se distinguiram por uma mesma característica: a coragem extrema, inabalável perante qualquer adversidade, desafio, polémica ou obstáculo. Por causa dessa coragem, ambos suscitaram paixões e ódios, e dividiram as suas nações no apoio e na repulsa. Mas ambos acabaram amados a nível global e ajudaram, cada um à sua maneira, a mudar o mundo.
Visto agora à distância, é fácil dizer que Muhammad Ali só atingiu esse estatuto porque foi o primeiro a perceber, no início da segunda metade do século XX, a importância dos media na construção da imagem pública. É verdade que ele aproveitou o aparecimento das câmaras de televisão para criar uma personagem que, então, rompia completamente com os cânones dos pugilistas e, em especial, dos atletas negros. Mas o mais espantoso é que ele fez isso tudo sozinho, por intuição, descaramento e coragem, sem necessitar do conselho das legiões de consultores e de especialistas em relações públicas que agora pululam em redor dos ídolos desportivos, tentando fabricar-lhes uma imagem mais adequada aos consumidores do que propriamente aos adeptos.
Pouco depois de completar os 20 anos de idade e de se sagrar campeão olímpico, nos Jogos de Roma de 1960, ainda conhecido como Cassius Clay, ele começou a construir uma imagem que ia muito para além do estilo veloz, atlético, imaginativo e revolucionário com que ganhava combates no ringue. Só que essa imagem era também o prolongamento desse estilo inovador que confundia os puristas do boxe, mas deixava os espetadores eufóricos com a rapidez dos seus golpes, a ousadia do bailado de pernas e o descaramento com que baixava a guarda e parecia deixar a sua cara, limpa e serena, à mercê dos murros dos adversários. Puro engano. Ele apenas “voava como uma borboleta para picar como uma abelha”. Tanto dentro das quatro cordas como fora delas.
Muhammad Ali construiu toda a sua carreira e a sua imagem em contracorrente. Nunca procurou um discurso que fosse ao encontro daquilo que os outros queriam ouvir. Ele dizia apenas o que sentia e pensava, como se fosse o centro do mundo e dono da verdade absoluta – tantas vezes com uma arrogância e uma violência escusadas. Por isso, nos primeiros anos da sua carreira, ele conseguia congregar o repúdio e o desprezo quase generalizado dos media tradicionais americanos, que não lhe perdoavam a “insolência” com que se exprimia – longe, muito longe dos discursos obedientes e bem comportados que, nessa época, apenas eram tolerados aos atletas e artistas de raça negra. A verdade é que ele soube, primeiro que todos os outros, apanhar o ar dos tempos que se avizinhavam. Melhor ainda: ele soube fazer apressar esse tempo novo, ajudar a soprar o vento da mudança, afrontar a ordem estabelecida, sacrificar-se em nome dos que pensavam como ele e nunca desistir. Ele foi uma estrela rock antes do rock, um revolucionário negro antes dos Black Panthers, um rapper antes da invenção do rap, um opositor da guerra do Vietname antes de isso ser uma “moda” nas universidades americanas.
Como pugilista, todos recordam as suas vitórias, os combates ganhos como jovem amador, o título olímpico, os três cinturões de campeão do mundo de pesos pesados (o primeiro como o mais novo de sempre, aos 22 anos!). Mas foi após as derrotas, nos ringues e na vida, que ele criou a sua imagem de lenda, que esculpiu a personalidade de lutador e moldou o espírito competitivo que manteve até ao fim.
O seu primeiro grande choque – um quase KO – foi quando regressou a casa com a medalha de ouro olímpica ao peito e depressa descobriu que, na América segregacionista, isso não lhe dava qualquer privilégio – continuava a não poder entrar nos restaurantes dos brancos e era apenas visto como o “negro que tinha ganho uma medalha”. Foi a partir daí que vincou, com cada vez maior fulgor, o seu combate pelos direitos humanos.
Campeão do mundo incontestado nos ringues, foi derrotado de forma abrupta, na secretaria, quando assumiu a sua “objeção de consciência” e recusou ser alistado para ir combater no Vietname – curiosamente, uma decisão tomada superiormente depois de ter rompido com os empresários brancos que promoveram os primeiros anos da sua carreira e decidiu entregar-se aos islamitas radicais da Nation of Islam. Durante três anos e meio – entre os 25 e os 28 anos, quando deveria ter estado no pico da sua forma física – ele foi proibido de combater, mantendo uma batalha legal que só terminou no Supremo Tribunal. Mas nunca abanou um milímetro. “Prendam-me se quiserem”, respondeu, várias vezes.
A prova de que a sua vida não seguiu um guião típico de Hollywood foi dada no seu regresso aos ringues, em 1970, no primeiro de três combates históricos contra Joe Frazier. O cenário era de filme: um renovado Madison Square Garden, em Nova Iorque, com dezenas de celebridades nas primeiras filas, Norman Mailer na bancada de Imprensa e Frank Sinatra (sim, Frank Sinatra!) a fazer a reportagem fotográfica para a revista Life. Mas Ali perdeu. Os anos de inatividade tinham-lhe retirado rapidez e o boxe já era diferente, mais veloz e movimentado, seguindo os padrões que ele tinha iniciado. Depois dessa derrota, Ali voltou a reinventar o boxe e cimentou a sua lenda, já com uma movimentação completamente diferente, com o KO histórico a George Foreman, no Zaire, no famoso Rumble in the Jungle – que Norman Mailer voltou a acompanhar, e do qual deixou um impressionante relato em livro, The Fight.
A última grande reivenção de Muhammad Ali foi feita já depois da sua retirada como pugilista, quando descobriu, em meados dos anos 1980, que sofria da doença de Parkinson que, aos poucos, lhe foi retirando destreza física e, acima de tudo, privou-o da capacidade de falar com que, durante décadas, tinha cimentado a sua lenda. Mas a forma serena como encarou a doença, sem nunca deixar de a combater e de se manter ativo nas causas dos direitos humanos, foi uma das melhores lições que deu à humanidade.
No início dos anos 1960, quando gritava ser “o maior”, humilhava os adversários dentro e fora dos ringues e teve, ainda por cima, a desfaçatez de renunciar ao seu nome “escravo”, Muhammad Ali chegou a ser o homem mais odiado da América. Os media não lhe perdoavam a insolência, os outros pugilistas não sabiam como o derrotar, a moral branca americana não conseguia tolerar um negro que falava com a autoridade de um autoproclamado “rei”. A sua recusa em combater na Guerra do Vietname e os anos de afastamento ajudaram a mudar tudo – até porque, ao mesmo tempo, a América também foi mudando… aproximando-se de Ali.
Presenciei, há duas décadas, o momento em que essa união completa entre Muhammad Ali e os americanos foi fraternalmente celebrada: a noite, quente e húmida. de 19 de julho de 1996, no ponto mais aguardado da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos.
Tinha terminado, há pouco, o longo desfile das delegações de atletas de todos os países e aguardava-se pelo acender da chama olímpica. Nos dias anteriores, tinham surgido vários nomes como possíveis candidatos a essa honraria, desde o pugilista Evander Hollyfield (natural de Atlanta) a Al Oerter (o lançador de peso que, até então, era o único a ter ganho medalhas de ouro em quatro Jogos consecutivos). Afinal, quem apareceu foi um homem alto e negro, vestido de branco, e com um braço a tremer por causa do Parkinson. A sensação foi como se, num estádio de futebol, alguém tivesse marcado um golo inesperado no último minuto da partida. Em menos de um segundo, todos os espetadores do estádio levantaram-se como se tivessem sofrido um choque elétrico. E gritou-se “Ali, Ali, Ali”, num misto de alegria, reconhecimento, e homenagem pela presença da lenda que nunca tinha desistido nem perdido a coragem. Ainda hoje, vinte anos depois, sinto esse arrepio.