A vida e a carreira de Rosa Mota não seriam as mesmas sem a Grécia. Foi na Grécia que ela correu, pela primeira vez, os 42 quilómetros da maratona. Foi na Grécia que ela transportou pela primeira vez a tocha olímpica. E é na Grécia que, nestes dias, ela voltou a correr com a chama dos Jogos, desta vez na cidade com o nome mítico de Maratona.
Entre o início e o fim desta história contam-se já 34 anos de diferença, mas no caso de Rosa Mota não se notam. Mesmo depois de retirada das competições, há mais de duas décadas, ela soube permanecer igual aos seus princípios, assumir-se como defensora acérrima dos valores mais sãos do desporto e construir uma imagem que é hoje fonte de inspiração para milhares de jovens desportistas que nem sequer eram nascidos quando ela ganhou as suas medalhas olímpicas.
“Foram os deuses gregos que me escolheram para ser maratonista”, disse-me ela, há uma dúzia de anos, ao recordar, sob o sol abrasador de Atenas, a sua primeira grande vitória internacional, que foi também o início de uma enorme revolução. Vale a pena recordar outras datas da sua carreira, com a Grécia como pano de fundo – e o mundo como testemunha.

Rosa Mota felicitada por Aurora Cunha após ganhar a maratona do Campeonato Europeu de Atletismo, em Atenas, 1982, na primeira vez que as mulheres foram oficialmente a correr a distância mais longa do atletismo
12 setembro de 1982
A primeira maratona e o fim do tabu
Hoje, parece completamente estúpido, desnecessário, e motivaria, até, as mais inflamadas discussões nas redes sociais, mas, naquele início da década de 80, as mulheres ainda estavam impedidas de participar em muitas provas do programa olímpico unicamente porque eram… mulheres. É preciso dizê-lo de forma clara: havia ainda, nessa época, “relatórios científicos” a justificar que o corpo e o organismo das atletas do sexo feminino não lhes permitiam participar em determinados desportos ou, no caso do atletismo, correr distâncias mais longas do que os 3000 metros.
Apesar de já se começar a notar alguma abertura – no meio de enorme contestação – nas maratonas de Boston ou de Nova Iorque, as regras de todas as grandes competições internacionais eram simples: as meninas não corriam a maratona e… ponto final.
Com maior ou menor rispidez, foi isso que Rosa Mota e José Pedrosa (seu treinador e companheiro) ouviram da parte dos responsáveis federativos portugueses, quando lhes foram perguntar se não existiria mesmo a possibilidade de ela participar na maratona dos Campeonatos da Europa de 1982, em Atenas, porque lhes parecia terem lido, algures, que a prova ia ser, pela primeira vez, aberta a mulheres: “Maratona feminina, onde é que já se viu isso? Deixem-se de maluquices”, responderam-lhes, numa época em que, contextualizemos, ainda não havia telemóveis nem internet (nem sequer faxes!), as comunicações eram rudimentares, tanto Portugal como a Grécia ainda não tinham aderido à União Europeia (então ainda CEE) e conseguir confirmar se as “senhoras” iam finalmente ser autorizadas a correr os 42 km e 195 metros da maratona era uma missão quase impossível, para alguém isolado aqui no canto da Europa.
Rosa Mota e José Pedrosa partiram, assim, naquele final de verão de 82 para Atenas, com a atleta inscrita na prova dos 3000 metros, mas ainda a espreitar a possibilidade de ela tentar a sua sorte, no último dia do Europeu, na maratona… caso a prova feminina estivesse mesmo no programa, conforme suspeitavam.
E a verdade é que estava – pela primeira vez na história de uma competição oficial, organizada sob a égide da Federação Internacional de Atletismo. E, ainda por cima, era uma prova com características especiais, já que era cumprida no percurso original cumprido por Fidípides, em 490 antes de Cristo, entre Maratona e Atenas, para anunciar a vitória ateniense sobre os exército persa e que depois seria retomada, em 1896, nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna.
A 9 de setembro de 1982, Rosa Mota cumpriu a sua obrigação oficial nos Europeus, ao concluir os 3000 metros em 12.º lugar (entre 20 concorrentes), duas posições atrás da outra atleta portuguesa presente, Aurora Cunha.
Três dias depois, no entanto, viajou com José Pedrosa para Maratona, onde alinhou, quase clandestina, na partida da prova mais clássica do atletismo. Era uma estreia absoluta para uma atleta que, mesmo nos treinos, nunca tinha corrido mais do que 20 quilómetros. E era também uma estreia, em provas oficiais, para todas as 27 atletas, de 17 países, que se apresentaram para quebrar um dos maiores tabus do desporto mundial: provar que as mulheres não eram tão frágeis quanto muitos pensavam e que podiam correr a maratona sem porem em causa a sua saúde – ideias que, na pátria traumatizada pela tragédia de Francisco Lázaro, nos Jogos Olímpicos de 1912, ganhavam ressonâncias ainda mais dramáticas. “Ainda havia muito aquela ideia de que as “meninas” – era assim que nos tratavam – eram muito frágeis, não aguentavam grandes esforços”, recordava Rosa Mota.
Aos 24 anos, sem qualquer experiência na distância, Rosa iniciou a corrida com todas as cautelas. Recordo, mais uma vez, a nossa conversa: “Comecei devagarinho, sempre nos últimos lugares. Só a partir dos 10 quilómetros é que mudei de ritmo. Fui lá mais para a frente e, aos 20 km, já só íamos quatro atletas na cabeça. Depois, ficámos só três. E, para minha surpresa, acabei por entrar isolada no estádio”.
Rosa Mota completou a primeira maratona feminina oficial da história com o tempo de 2:36:03 (hoje, não chegava para mínimo olímpico…), 25 segundos à frente da italiana Laura Fogli e 35 segundos mais rápida do que a norueguesa – e grande favorita! – Ingrid Kristiansen.

Durante uma década, Rosa Mota ganhou as competições mais importantes do atletismo mundial. Na Ásia, nomeadamente no Japão, os seus feitos ainda hoje são recordados com admiração
Foi a primeira de uma longa lista de vitórias de Rosa Mota em maratonas. “Na altura, sentia que estava a ser pioneira, a abrir as portas para que o desporto e a atividade física fossem mais abertos para as mulheres. Felizmente tudo mudou. E muito”, recordou-me ela, já depois de concluída uma carreira notável, em que somou, a este título inicial, uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984, uma medalha de ouro nos Jogos de Seoul 1988, um titulo mundial em Roma 1987 (talvez a melhor corrida da sua carreira!), mais dois títulos europeus (em Estugarda 1986 e Split 1990), além de vitórias em todas as mais importantes maratonas internacionais: Roterdão (1982), Chicago (1983, 1984), Boston (1987, 1988, 1990), Londres (1991), Osaka (1989) e Tóquio (1986). A sua melhor marca – 2:23:29, conseguida na maratona de Chicago, em 1985 – ainda é melhor do que a de qualquer uma das cinco atletas portuguesas atualmente com mínimos para os próximos Jogos Olímpicos (onde só três podem ir).
Rosa Mota, Kihachiro Onitsuka e Jorge Sampaio na manhã da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004
13 agosto 2004
A chama com Sampaio e com o venerável Onitsuka
Apesar do seu enorme palmarés como atleta, a única medalhada nas duas primeiras maratonas olímpicas mantinha uma mágoa em relação aos Jogos: nunca ter tido a honra de transportar a chama. Mas não desistiu enquanto não o conseguiu.
A oportunidade surgiu em vésperas dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, e graças a um “empurrão” especial: Jorge Sampaio, então Presidente da República, escreveu uma carta de recomendação a um amigo no comité organizador dos Jogos, a interceder pela antiga maratonista e a explicar-lhe o enorme desejo de Rosa por participar na estafeta simbólica, em especial em solo grego, onde tinha conquistado a sua primeira grande vitória internacional. O pedido foi rapidamente atendido.
A participação de Rosa ficou agendada para a sexta-feira, 13 de agosto, logo às primeiras horas de sol, com a cidade ainda serena e calma, mas já a preparar-se para a grande cerimónia de abertura dessa noite.
Kihachiro Onitsuka e Rosa Mota, em Atenas 2004

Rosa Mota e Kihachiro Onitska, com a chama de Atenas 2004, já depois da desistência de Jorge Sampaio
No entanto, Rosa Mota não apareceu sozinha nessa manhã. Grata, convidou (desafiou…) Jorge Sampaio a acompanhá-la, em ritmo de corrida ligeira, ao longo do pequeno percurso de 300 metros. Mas não só: convidou também um ancião japonês, de 86 anos, gentil como todos os nipónicos, que se apresentou sorridente e equipado como um verdadeiro atleta, com as cores dos Jogos de Atenas. Ninguém o conhecia, mas percebia-se a deferência e o respeito com que Rosa o tratava. Como, igualmente, o orgulho humilde que ele ostentava por participar naquele momento histórico. Quando o seu nome foi revelado, quem lá estava percebeu que, afinal, se encontrava perante uma lenda: nada mais nada menos do que o venerável Kihachiro Onitsuka, o lendário fundador da marca desportiva Asics (e que deu o nome aos célebres Onitsuka Tiger, popularizados por Uma Thurman no filme “Kill Bill”), patrocinador de Rosa Mota ao longo de toda a sua carreira.
Muito respeitado entre os atletas, Onitsuka criou do nada, num país devastado pela II Guerra Mundial, uma marca desportiva que conseguiu tornar-se a mais importante do Japão e uma das mais poderosas do mundo. E foi uma espécie de padrinho da Nike, cujo fundador, Phil Knight, começou no negócio como distribuidor dos Onitsuka Tiger no mercado americano.
O percurso da tocha olímpica foi rápido. Ao fim de 50 metros de corrida, Jorge Sampaio desistiu, ofegante. Onitsuka manteve-se sorridente ao lado de Rosa Mota, até ao fim. E com uma foto para a posteridade.
26 abril de 2016
Outra vez com a chama, em Maratona
Rosa Mota regressou à Grécia e novamente para correr com a tocha olímpica. A atual vice-presidente do Comité Olímpico de Portugal participou na estafeta olímpica dos Jogos do Rio 2016, na cidade de Maratona, no âmbito das suas funções como embaixadora do projeto Save the Dream, uma organização do International Centre for Sport Security e do Comité Olímpico do Qatar.
No final, deixou uma mensagem simples: “Foi importante para relembrar como o desporto pode unir e inspirar, assim como promover o papel vital que pode desempenhar na promoção da paz e harmonia na sociedade”.

Rosa Mota a passar a chama para o corredor seguinte