A nova legislação laboral não é apenas um conjunto de alterações ao modo de regular as relações de trabalho, é uma revolução que subverte um consenso que faz parte do chão comum das democracias liberais do pós-guerra. Deixa em larga medida de ver o direito do trabalho como um instrumento que tem como um dos objetivos centrais a proteção da parte mais fraca, a do trabalhador, e quer transformar o trabalho num mero fator de produção como o capital ou a terra.
É exatamente isso que representam normas como o banco de horas individual, a possibilidade de trabalhadores do quadro da empresa serem substituídos por empresas de trabalho temporário (no limite, os mesmos trabalhadores passam a ser precários indefinidamente), o fim da criminalização do trabalho não declarado (claro incentivo à informalidade do trabalho e à fuga ao Fisco e a pagamentos à segurança social), o poder estar toda a vida com um contrato a prazo, ataques concretos à contratação coletiva, perda do direito de reintegração em caso de despedimento ilegal e, claro, o praticamente livre despedimento individual.
Não nomeio sequer a maior parte das alterações mais importantes.
Pouco importa agora lembrar que a legislação laboral não é uma preocupação dos empresários e das empresas ou que, de facto, já havia um desequilíbrio significativo que se manifestava, por exemplo, em o despedimento ser quase livre – o facto é que os patrões já despediam quem queriam.
Nunca, porém, me parece demais recordar a importância do trabalho na comunidade. O trabalho é muito daquilo que somos, é boa parte da nossa relação com o mundo e com os outros. Tem a ver com carácter, com respeito por nós e pelos outros.
Não há lugar em que a possibilidade do abuso por parte de quem tem mais poder (sempre o empregador) seja tão nociva, tão comprometedora da dignidade da pessoa. É que é naquele espaço que tiramos o sustento para a nossa família, nos realizamos, nos emancipamos.
Não foi em vão que a Doutrina Social da Igreja foi tão enfática em defender uma regulação de trabalho que defendesse o trabalhador. Para essas teses, o trabalho tem de dignificar, e só dignifica se se proteger quem trabalha.
Num mundo instável tornar as relações laborais ainda mais instáveis é atirar gasolina para a fogueira: menos previsibilidade para se poder planear a vida, para se poder ter filhos, para desenvolvimento pessoal e profissional.
Fico perplexo quando se diz que esta legislação é necessária para melhor nos adaptarmos às novas realidades da Inteligência Artificial, economia da partilha etc etc. É exatamente ao contrário: quando a insegurança em relação ao futuro, a possibilidade de convulsões e o medo se instala é fundamental termos algo que nos dê alguma segurança.
E sejamos sinceros: não é o medo de ser despedido que faz alguém mais produtivo. É a formação, os métodos de trabalho, a organização, a perspetiva de um bom futuro.
Quando o primeiro-ministro afirma que a greve geral de amanhã é política está coberto de razão. Como se defender a dignidade, os direitos dos trabalhadores e a comunidade fosse outra coisa que não política.
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