Os últimos 50 anos, período que coincide com o regime democrático, foram, provavelmente, aqueles em que o nível de corrupção, em Portugal, terá sido mais baixo. Mesmo contando com as inúmeras falcatruas associadas aos dinheiros que vieram da Europa, o País fez um caminho seguro e constante, sobretudo ao nível das mentalidades, das práticas e do escrutínio. Tudo isto no campo das exigências éticas, da consciencialização coletiva e na censura social contra o “favor”, o nepotismo, o clientelismo e a cunha – que passámos a criminalizar sob a moldura penal atribuída ao “tráfico de influências”. E os comportamentos que antes aceitávamos como normais são hoje condenados, investigados por um poder judicial independente e fiscalizados por uma imprensa livre. Sem contar com os poderes institucionais de oposições que funcionam e têm liberdade para atuar, fiscalizar e denunciar. Os cartazes e os discursos populistas – sim, refiro-me ao Chega – que falam de 50 anos de corrupção são desmentidos pelos factos: houve imensa corrupção, como há, em todos os regimes, mas nunca ela tinha sido tão sistematicamente prevenida, investigada e, no final – o mais difícil e, portanto, ainda com caminho para andar –, punida. Os portugueses mais velhos, com boa memória, lembram-se do País da “atençãozinha”, do “empenho”, do untar as mãos ao fiscal, ao polícia de trânsito ou ao simples manga de alpaca das Finanças. Tudo isto ainda se passa? Sim, pontualmente. Mas é muito mais arriscado. Na pirâmide de favores, cunhas e endogamia sistémicos, a dimensão da metástase corruptiva aumentava consoante crescia a importância do detentor do cargo público ou do servidor do Estado, até à dimensão da oligarquia pura e simples. Antes disso, desde os Descobrimentos, passando pela Monarquia Constitucional e pelos desmandos da I República, é bom nem falar. No Estado Novo, a inexistência de imprensa livre e a ficção de uma separação de poderes que não existia eram sinónimo de inexistência, também, de exemplos de corrupção. Claro, nunca apareciam à luz do dia. E até um escândalo sexual, o caso Ballet Rose, em que altas figuras do regime estiveram comprovadamente envolvidas numa terrível organização de pedofilia, quando foi denunciado, pela oposição, à imprensa internacional, valeu aos seus denunciadores perseguições políticas implacáveis, ordenadas pelo governo e pela polícia de Salazar.
Nesta edição (ver págs. 50-55), um investigador da Universidade de Coimbra, que se debruçou, em livro, sobre os escândalos que abalaram a democracia, afirma que há sempre “algo de podre num regime que não tem escândalos”. O que se percebe: os escândalos deste tipo decorrem da natureza humana. Quando “não existem”, são abafados, escondidos, a imprensa é amordaçada e as autoridades são coniventes.
Se é o regime que vai a julgamento, digamos, desde já, que está absolvido: nenhum outro, desses regimes que são louvados pelas forças que falam de 50 anos de corrupção, aceitaria sujeitar-se a este escrutínio. É essa a superioridade moral dos últimos 50 anos
O próprio António de Oliveira Salazar – segundo os seus saudosistas, o “estadista mais íntegro” da nossa História – não resiste (mesmo, neste caso, sem culpa própria) a um escrutínio mais apertado, o escrutínio da democracia. O que se diria, hoje, se um antigo primeiro-ministro, que já não exerce funções, fosse autorizado a continuar a viver na residência oficial, com todas as despesas pagas e à custa dos contribuintes? Pois foi isso mesmo que se passou com o ditador, depois de, em 1968, ele ter sido destituído. E passou-se de forma vitalícia!
Até fecharmos esta edição, e apesar de tentativas dilatórias de última hora, tudo indicava que José Sócrates começaria a ser julgado, nesta quinta-feira, no âmbito – finalmente! – da Operação Marquês. Sócrates começou por ser indiciado, pelo juiz de instrução Carlos Alexandre, de 31 crimes: três de corrupção passiva na qualidade de detentor de cargo público, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada. O antigo primeiro-ministro foi detido (no âmbito de uma investigação que já teria dois anos…) a 21 de novembro de 2014. Esteve em prisão preventiva até 4 de setembro de 2015 e em prisão domiciliária mais um mês e 12 dias. Quando o processo chegou às mãos do segundo juiz de instrução, Ivo Rosa, este fez cair a maior parte dos crimes, uns por insuficiência de provas, outros por estarem prescritos, com duras críticas ao Ministério Público. Mas o recurso deste, junto da Relação, permitiu que as respetivas desembargadoras, por sua vez, criticassem a “ingenuidade” de Ivo Rosa, recuperando quase todos os crimes. Sócrates é acusado de três crimes de corrupção passiva (como inicialmente), 13 de branqueamento e seis de fraude fiscal. Do total inicial de 28 arguidos, sobram 22; e, de 189 crimes, sobreviveram 118. Nomes como os de Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, Armando Vara, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro estão entre os acusados.
Mas a figura principal, José Sócrates, absorve as atenções gerais. A sua personagem daria um filme de Hollywood. Contraditório, na pele de “Dr. Jeckyll”, chefiou um primeiro governo fortíssimo, qualificado e reformista, o último governo reformista que tivemos, depois de Cavaco Silva (que, enquanto Presidente da República contemporâneo desse executivo, chegou a elogiar o ímpeto socrático). Cortando a direito, enfrentando lóbis, reduziu as férias judiciais, retirou privilégios a corporações, iniciou a digitalização da administração pública, impôs o ensino de inglês nas escolas, desde o primeiro ciclo, e aulas a tempo inteiro, providenciou um computador a cada criança em idade escolar, controlou o défice, patrocinou um importante tratado europeu e continuou a construção de vias de comunicação e de outras infraestruturas fundamentais para o desenvolvimento do País. Mas o “Mr. Hide” que havia dentro dele trouxe o autoritarismo, a falta de cultura democrática, mediante o impulso para dominar a comunicação social e silenciar telejornais e, sim, por essa via, exibindo laivos de atentado ao Estado de direito (crime pelo qual terá sido investigado) e pressões sobre a Justiça. Depois de ter saído, ficámos a saber da vida de fausto que levava sem ter meios conhecidos para tal, os pagamentos de despesas astronómicas em numerário, o “amigo” generoso que “lhe pagava” as contas e as explicações estrambólicas sobre casas em Paris e cofres onde nascia dinheiro. Também ouvimos escutas e gravações dos interrogatórios, seus e do “amigo”, que explicitam a desfaçatez, o inverosímil e a fábula. Os tribunais do Estado de direito, dos quais não se esperam preconceitos nem ideias preconcebidas, destrinçarão entre as perceções e a realidade. Mas se é o regime que vai a julgamento, digamos, desde já, que está absolvido: nenhum outro, desses regimes que são louvados pelas forças que falam de 50 anos de corrupção, aceitaria sujeitar-se a este escrutínio. Se Sócrates tivesse os meios de Salazar, ainda estava em São Bento. É essa a superioridade moral dos últimos 50 anos.