A médica Rasha Alawied tem 34 anos e é libanesa. Formou-se na Universidade Americana de Beirute em 2015 e, três anos depois, emigrou para os Estados Unidos da América. Nos EUA, há poucos médicos a trabalhar na área em que Rasha se especializou, a nefrologia de transplantes. Nos últimos anos, obteve bolsas da Universidade do Ohio e da Universidade de Washington. Também trabalhou em Yale e estava, agora, na Universidade de Brown.
Em março, Rasha – portadora de um visto válido – visitou a família ao Líbano, que não está sequer na lista de países cujos cidadãos vão ser proibidos de entrar nos EUA. Quando regressou, foi detida e recambiada num voo para Paris. Os seus doentes, incluindo os que aguardavam transplantes, ficaram pendurados. A sua expulsão gerou indignação por parte da comunidade académica, houve advogados a contestar e juízes a afirmar que os serviços fronteiriços desobedeceram às ordens do tribunal. A Segurança Interna, por seu lado, acusou Rasha de ter ido ao funeral de um antigo líder do Hezbollah. Na conta oficial da Casa Branca, foi publicada, ao lado de uma fotografia de Rasha, uma imagem de Trump a acenar, com os seguintes dizeres: “Bye bye Rasha. Deported.”
Infelizmente, a história de Rasha Alawied é apenas uma das muitas tristes histórias que poderíamos contar. A perseguição da Casa Branca às universidades norte-americanas dura desde março. Basicamente, o ataque tem sido operado de duas maneiras: i) expulsão de professores, investigadores e alunos; ii) corte de financiamentos. Ontem, a administração norte-americana voltou a revogar os contratos entre o Estado e a Universidade de Harvard que ainda estavam em vigor. Estima-se que o corte chegue, desta vez, aos 100 milhões de dólares.
Trump já tinha ameaçado fazer outro corte, no valor de três mil milhões de dólares, a somar aos quase 3,2 mil milhões de dólares que já estavam congelados. Também ameaçou pôr fim à isenção de impostos da universidade mais rica do mundo (com um fundo de reserva da ordem dos 53 mil milhões de dólares). Harvard, que entre muitos outros disparates tem sido acusada de não respeitar “os valores americanos”, exigiu em tribunal o descongelamento das verbas já aprovadas e contratualizadas. Na semana passada, teve uma pequena vitória: a juíza Allison D. Burrough suspendeu provisoriamente uma ordem da Casa Branca que proibia a universidade de admitir mais estudantes estrangeiros.
No meio da loucura, há universidades europeias, como Cambridge, no Reino Unido, a aproveitar a oportunidade e a acolher investigadores de topo provenientes do outro lado do Atlântico. Também o Instituto Karolinska, na Suécia, está a oferecer sabáticas na área da investigação biomédica. A China fez saber que se encontra de braços abertos para receber os cientistas sino-americanos e – imagine-se! – já proclamou ser um país “aberto, inclusivo e cheio de oportunidades”.
A fúria de Trump contra o ensino superior é mais complexa do que parece. Em março, quando começou o ataque às universidades, Fareed Zakaria dedicou a sua coluna no Washington Post ao assunto e pôs o dedo na ferida. Reconheceu que, nos últimos anos, as faculdades norte-americanas alimentaram o sentimento antielites e que, no fundo, o wokismo favoreceu esta perseguição. “Há muito que defendo que as universidades têm um grande problema: têm muito pouca diversidade intelectual e ideológica – que é o tipo de diversidade mais importante num campus. Mas a forma de resolver isto não é restringir o discurso de esquerda radical, mas acrescentar vozes e pontos de vista de outras partes do espectro. A resposta à censura da esquerda não é a censura da direita”, escreveu o autor de Era de Revoluções.
Há muitas Rashas à face da terra. Algumas delas contribuem há anos para a massa crítica dos EUA e do mundo, fazem descobertas científicas que salvam vidas, vencem prémios Nobel. Mas desde março que muitos professores e investigadores, alguns portadores de green cards, foram prudentemente aconselhados a não sair do país que os acolheu, onde vivem há anos. Têm medo porque, no regresso, podem ser barrados de forma discricionária. O discurso securitário da administração norte-americana é agressivo e implacável, mas a verdade é que os EUA – a terra da esperança e dos seus sonhos, como diz o nome da tour de Bruce Springsteen – estão à beira de transformar-se num território autocrático, sem lei nem roque.
É fácil de reconhecer que uma parte do poder dos EUA na geopolítica mundial das últimas décadas se deve ao investimento na ciência e na promoção do pensamento livre. Há pelo menos 60 anos que vemos o outro lado do Atlântico como uma extraordinária terra de oportunidades, com uma espantosa capacidade de promover o talento e a inovação, de fazer dinheiro, de atrair os melhores dos melhores. Pior para eles, melhor para nós, dirão os cínicos. A dura realidade que temos que aceitar é: perdemos todos. E não, pardon my french, isto não é bullshit.