Aquilo que sinto acerca do que se está a passar no Ginjal assemelha-se ao que sentiria perante a morte de alguém próximo, que estava há muito tempo em estado terminal, num processo de coma induzido. Não sei que atitude tomar, que não seja lamentar a perda e chorar.
Para quem se lembra quando no século passado, em 1994, decidimos no Centro de Arqueologia de Almada (CAA) que era importante iniciar um processo de inventário, registo e recolha de memórias acerca do Cais do Ginjal, a principal motivação veio do facto de que havia sido criado um consórcio entre a Câmara Municipal de Almada (CMA) e os principais e maiores proprietários do Ginjal. A saber: Grupo Grão-Pará; Sociedade Comercial Teotónio Pereira e Galp. Já então se previa que o Ginjal, tal como o conhecíamos, ia ser sujeito a uma grande operação de destruição.
O consórcio não teve mais desenvolvimentos porque as partes não se entenderam e a autarquia, não tendo lá qualquer propriedade, não conseguiu fazer valer os seus interesses. Uns anos mais tarde, no âmbito do programa internacional Europan (urbanismo e arquitetura), a CMA lançou um concurso de ideias para o sítio arqueológico da Quinta do Almaraz, integrando ainda o Ginjal dentro dos limites do território do concurso. O autor da proposta vencedora viria posteriormente a elaborar um estudo de enquadramento estratégico para o Ginjal, cujas linhas programáticas viriam a ser aprovadas em 2008. Tive oportunidade de estar presente em algumas das apresentações do esboço desse estudo, e confesso que fiquei agradado com a proposta, a qual previa a recuperação dos edifícios da frente ribeirinha, bem como a criação de espaços polivalentes e de circulação entre os tardozes e a base da arriba.
Contudo, nada aconteceu até que um único investidor (o grupo madeirense AFA) comprou a totalidade, ou quase, dos edifícios do Ginjal, dando início a um processo sistemático de desertificação forçada e entaipamento de vãos. Importa lembrar que até então alguns espaços estavam ocupados com oficinas, habitações, salas de espetáculo e outros usos consentidos pelos anteriores proprietários. Não esqueço a exposição produzida pelo CAA: “Ginjalma, as Memórias e o Espaço”, que esteve patente entre julho a dezembro de 2002 nos antigos armazéns de vinhos, graciosamente cedidos pela família Teotónio Pereira.
Quando o novo proprietário tomou posse do Ginjal, definiu como principal objetivo promover a destruição do edificado, através de uma estratégia que combinava vandalismo e abandono. Não terá sido ocasional o deflagrar, em 2018, de um incêndio exatamente no armazém onde se fez a exposição “Ginjalma”. Trata-se de uma estratégia clássica da “Cidade Neoliberal”, tão bem descrita por Ana Estevens no livro com o mesmo título, publicado em 2017. Estratégia que se resume à premissa de promover a degradação e a destruição, até ao ponto em que seja fácil justificar a necessidade de demolição total como única solução “viável”.
O proprietário terá então encomendado ao autor do plano inicial uma nova proposta que “rentabilizasse” o investimento, através de construção massiva de habitação em toda a encosta da arriba, embora o seu principal objetivo seja a construção de um hotel no espaço da antiga Fábrica de Óleo de Fígado de Bacalhau, visto que a hotelaria é uma das áreas de interesse do dito grupo. O conjunto edificado da fábrica, dada a sua originalidade funcional e importância histórica, deveria, na minha opinião, ter sido há muito classificado pelas instâncias nacionais que tutelam o património com um grau de proteção elevado. Recordo que, no âmbito da consulta pública, o CAA apresentou um parecer totalmente desfavorável à proposta deste Plano de Pormenor demolidor apresentado em 2018.
Importa igualmente salientar que a elaboração do plano em presença foi iniciada sob a gestão municipal da CDU, que àquela data apoiou e aplaudiu os seus especulativos Termos de Referência, embora agora na oposição esteja a fazer figura de “virgem ofendida”.
Perante o plano então apresentado, era já óbvio que estava previsto, embora não assumido, que se tratava da demolição de todos os edifícios na linha do Cais, seguida da construção de outros parecidos, configurando um “refazimento” ou falso histórico, prática hoje desaconselhada por todas as cartas de património emanadas pelas instâncias internacionais, designadamente o ICOMOS.
Historicamente o Ginjal, não teve uma vida muito longa, embora intensa, conforme relatado na monografia “Memórias do Ginjal”, publicada em 2000 pelo CAA. Os primeiros armazéns terão sido construídos durante o século XVII, e o cais foi sendo construído por iniciativa dos proprietários, na sua maioria ligados ao comércio vinícola, tirando partido da situação geográfica da frente ribeirinha virada a norte, apropriada à conservação dos vinhos armazenados, e da facilidade de acesso fluvial para cargas e descargas.
A situação atual é uma consequência natural do processo iniciado aquando a construção da Ponte sobre o Tejo. A partir do momento em que o cais perdeu a sua funcionalidade, em detrimento do transporte rodoviário, a conservação do cais deixou de ser rentável, pois todo o cais, bem como os edifícios, são privados.
Ao atual executivo da CMA, herdeiro deste embuste urbanístico, impotente perante a Administração do Porto de Lisboa, entidade responsável por 2% do PIB nacional, que se arroga com jurisdição sobre o cais, resta pressionar o proprietário, através de uma ordem do tribunal, fazendo-lhe a vontade. Isto é, terraplanar o Ginjal para a seguir construir o que entenderem, ou simplesmente limpar as ruínas que iriam sujar as vistas do futuro hotel.
O CAA, enquanto associação de defesa do património com cinquenta e dois anos de atividade, coligiu um enorme volume de documentação escrita, gráfica, fotográfica e documental em suporte vídeo e áudio, a qual constitui um acervo único sobre a memória do Cais do Ginjal, que sobreviverá às máquinas que afanosamente o destroem. É essa memória que tentaremos manter e divulgar, desde que para tal se encontrem os recursos necessários à sua preservação.
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