Imaginem o seguinte cenário: dois homens a falar num debate público e um diz “Acho que a única forma de revertermos a liberalização da lei do aborto passa por um novo referendo” e outro diz que a Lei da Eutanásia “É uma lei para ir para o cesto dos papéis”. Diriam que estão em 2024? Que estes dois homens serão, muito provavelmente, eleitos deputados em pouco mais de uma semana? Mas é a realidade, um deles será eleito pela Alternativa Democrática (AD) e outro pelo Chega.
Esta semana, Paulo Núncio, o vice-presidente do CDS, o número 4 na lista da AD ao círculo eleitoral de Lisboa, referiu, num debate promovido pela Federação Portuguesa pela Vida, que se devia fazer um novo referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Chegou mesmo a dizer, com saudade, que durante o governo da PaF (que juntava o PSD e o CDS) se tinha conseguido limitar o acesso a este procedimento e que foi com muita pena que a esquerda tinha retirado essas limitações.
Ao mesmo tempo, temos a esquerda a discutir e a propor nos seus programas formas de retirar alguns constrangimentos que ainda há à realização da IVG. Em Portugal, a IVG é legal até às 10 semanas desde 2007, e em alguns países da Europa, é mesmo legal até às 12 (Alemanha e Itália) ou 14 semanas (França e Espanha). Será que não deveríamos aumentar o período temporal? É essa a discussão que devíamos estar a ter!
Devíamos estar a discutir como ter um SNS que garanta o real acesso à IVG, dentro dos prazos legais, sem custos – incluindo os de deslocação, se necessário –, em condições de igualdade em todo o território nacional. Devíamos estar a discutir o estender o período de disponibilidade de apoio psicológico às mulheres que recorrem à IVG após a realização da mesma (e não apenas anteriormente).
Em 2007, aquando do segundo referendo à IVG, eu era demasiado nova para votar, mas foi um assunto que, tal como aconteceu comigo, levou muitas mulheres que não tinham ligação ao mundo da política a ter ações políticas claras. A tomar posição publicamente, junto das suas famílias e amigos. Foi a luta pelos nossos direitos, pelos direitos das nossas mães, irmãs e, esperávamos nós, das nossas filhas. Foi a luta por garantir que não morreria nem mais uma mulher em Portugal a fazer um aborto clandestino, ou a passar experiências traumáticas que as mutilariam para o resto da vida.
Quer dizer que toda a gente na AD quer um novo referendo ao aborto? Não, o assunto merece honestidade intelectual. No entanto, não é um assunto de menor importância porque Paulo Núncio não é um militante base e está longe de ser o único político com protagonismo na AD com ideias altamente conservadoras. Teresa Morais lidera a lista da AD em Setúbal, e são conhecidas as suas declarações contra o casamento de pessoas do mesmo género. Pedro Passos Coelho liderava o tal governo PaF, que limitou o acesso à IVG, em 2015, com a introdução de taxas moderadoras, e já apareceu na campanha da AD e são várias as pessoas que o apoiavam e que estão atualmente nas listas. E, em nome da tal honestidade intelectual, nem vou falar do posicionamento do Chega porque nada prova que faça parte do governo mesmo que a AD ganhe as eleições, mas, a mim, deixa-me nervosa essa possibilidade.
Para as mulheres que se uniram em 2007 para dizer “sim” aos nossos direitos, e aos das nossas filhas, peço que não os tomem como garantidos. Lembrem-se que a ação política básica que fizeram na altura, o voto, é também necessária agora.
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