Manuel Heitor pode até nem ser dos ministros mais mediáticos, mas já garantiu um lugar na história: se em outubro de 2019 fechar o mandato com a Agência Espacial Portuguesa (AEP) constituída terá direito a uma ditosa menção nos manuais de história da posteridade. Pode até falhar tudo o resto, mas se a Agência estiver pronta a descolar por essa altura, será merecedor da reverência que apenas se reserva aos audazes. O que não invalida que está obrigado a ganhar num jogo de tudo ou nada. Se fechar a legislatura sem Agência Espacial a funcionar, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior entra igualmente para a memória futura – mas do anedotário nacional.
O ancestral ceticismo lusitano poderá achar que se trata de um passo demasiado grande para o ministro que mais não representa que um minúsculo tropeção para o País, mas parece-me que é essencialmente o contrário. Manuel Heitor, ministro independente que sobreviveu a uma remodelação que ceifou os responsáveis pelas pastas da Economia, da Defesa e da Saúde, mesmo depois de ter assinado uma petição contra a política da ciência que tutela (!), pode ter posto a cabeça no cepo ao dizer que vai avançar com uma AEP num país que revela laivos de mil-novecentos-e-oitentismo e tende a encarar as coisas da ciência com o mesmo descrédito de algumas personagens de Tal Canal – mas não é o ministro que tem de ter receio que a AEP frustre como frustrou a Portugal Space original, que visitei no início do milénio, expectante de deparar com uma estratégia e desiludido pouco depois, por descobrir, que afinal essa tentativa de Agência mais não era que um punhado de civis fechados numa sala, sem saberem se aquilo que pensavam, projetavam ou falavam alguma vez seria entendido ou levado avante pelo militar de alta patente que o Governo da altura colocou no gabinete ao lado para liderar a mesma Agência.
Não, não é o ministro que está em causa, se a Agência não vingar. Os vexames são passageiros – e o desassombro que mais parece o de um duplo de cinema à beira do abismo, leva a crer que Heitor saberá bem o que fazer, se o projeto implodir antes da contagem final. O País, o Governo, o Estado, os Partidos e o Povo, mesmo que alinhem na zombaria que, em caso de insucesso, haverá de ser usada em coffeebreaks de conferências e bancadas do Parlamento, é que podem não ter percebido que o Espaço é mesmo isso: um infindável abismo que pode tirar tudo – e também é uma aposta determinante para este país continuar a ser país ou, pelo menos, seguir as tendências que todos os países que realmente contam para o totobola mundial têm vindo a aplicar.
O cenário explica-se numa frase: quem tiver capacidade operacional no Espaço aumenta o controlo que exerce na Terra – e passa para um novo nível de evolução económica e civilizacional. No caso de Portugal, o Espaço tem um valor acrescentado: é, possivelmente, a via mais eficiente e menos onerosa para a gestão de todas aquelas milhas marítimas (e correspondente espaço aéreo) que rodeiam a costa continental e arquipélagos dos Açores e da Madeira.
No anúncio que fez antes do Natal, o ministro deu a conhecer a intenção de investir menos de um milhão de euros na criação da AEP. Também apontou os primeiros lançamentos de microssatélites na Base da ilha de Santa Maria, Açores, para 2021, e revelou que a AEP deverá funcionar com uma forte componente empresarial que não a deverá impedir de se tornar a interlocutora privilegiada da Agência Espacial Europeia (ESA) e do recém-constituído Air-Center, que tem por objetivo o estudo e a exploração do Atlântico.
Estes são os dados que não oferecem grande reparo. Depois há as incógnitas. A aparente reincidência na denominação de Portugal Space pode ser apenas coincidência, mas quando se verifica que a sede da futura Agência vai ser instalada em Santa Maria, passo a temer um presságio. Acredito que esta é mais uma “heitorice” que é de louvar, mas sei que aquilo a que os forasteiros vulgarmente chamam de “Lisboa” pode concentrar tanta mesquinhez quanto aquela que costuma estar dispersa por um País inteiro. Pelo que não deverá tardar muito até que uma qualquer viagem de avião em primeira classe mal explicada, as legítimas reivindicações de agricultores ou habitantes locais, ou então a incapacidade para contratar especialistas para um local mais remoto façam as primeiras baixas. E mesmo que todas estas situações estejam acauteladas, convém não subestimar a vontade de protagonismo de alguns intervenientes que, segundo me dizem, preferiram não acompanhar o ministro em eventos públicos recentes para poderem aparecer em ocasiões em que têm a TV só para si. Na menos má das hipóteses estes casos custarão apenas a cabeça de um dirigente; na pior de todas, servirão de argumento final para acabar com a Agência.
Bem mais espinhosa será a relação que a Agência terá de manter com as Forças Armadas: nos EUA, o Espaço é um dos pilares da liderança tecnológica atual, mas é também um novo ramo militar – e por isso, Donald Trump parece-me uma pessoa desprovida de senso ou inteligência nas coisas que diz, mas não quando anuncia a intenção de criar uma força armada espacial. Manuel Heitor ainda não se pronunciou sobre a relação que a futura AEP terá com os militares, mas receio que essa relação tenha um efeito similar ao da guerra contra os Cylons, na Galactica.
Mesmo sendo o principal, e mui respeitoso e honorável garante da Nação e da democracia, as Forças Armadas não têm nem capacidade, nem tecnologias, nem pessoal, ou sequer conhecimentos e rotinas para gerir a Portugal Space. Até podiam ter a ambição – mas só se tivessem iniciado esse trabalho há 20 anos. Aos que não concordam comigo, deixo apenas uma resposta de algibeira: preocupem-se em defender bem os paióis e depois de conseguirem isso, logo se verá qual o papel que terão no Espaço.
Vencer a mesquinhez regionalista e a falta de meios dos militares até poderá assemelhar-se a tarefas de somenos quando comparadas com o cenário que vai sair das próximas eleições legislativas. Nada garante que o próximo Governo não decide mudar tudo quando, aos primeiros sinais de crise económica, surgir um sindicalista a alegar que Portugal gasta no Espaço o que não gasta com os trabalhadores, apesar de idolatrar os feitos de Iuri Gagarin, como se a Rússia atual ainda fosse soviética. E também nada garante que este mesmo sindicalista não tem a concorrência pelo título nacional do provincianismo bacoco de um qualquer gestor da moda a fazer uma perninha no lóbi governamental que defende que mais vale comprar tudo em segunda mão aos EUA – repetindo a lógica que levou a comprar o PoSat, o primeiro satélite português, que por sinal foi construído em Inglaterra, e que poucas funções válidas terá tido, se não contarmos com as comunicações com a resistência maubere, antes da independência de Timor Lorosae. Dito por outras palavras: só quem nunca esteve em Portugal poderá garantir que o próximo governo não desfaz a AEP que vier a ser criada.
Mas vamos ser otimistas; vamos acreditar que Heitor não sucumbe a um qualquer cavalo de troia político e que o futuro Governo não tem vistas curtas. Mesmo que isso aconteça, o Governo português e a AEP vão arrancar com uma decisão complexa logo a abrir: alinhar com os EUA, aliados na NATO que, apesar dos dislates do presidente atual e do abusivo “american way of life”, ainda são um dos garantes da democracia na Europa, ou privilegiar a China, recém-firmada superpotência espacial, que anunciou a participação num investimento de 50 milhões de euros na instalação dos laboratórios StarLab para o desenvolvimento e fabrico de satélites em Portugal? E a ESA, o que dirá disto tudo?
Politicamente falando, Manuel Heitor está numa posição comparável à da tripulação do Apollo 11 pouco antes de chegar à Lua, em julho de 1969. É verdade que é dos poucos que consegue ver nitidamente o satélite natural – mas todos sabemos que é essa a única condição indispensável para se ser rotulado de lunático.