Já só faltava meia hora para as portas de acesso encerrarem quando me sentei no chão do Salão da FIL de Lisboa, onde iria acontecer o grande Darbar de celebração dos 60 anos de liderança do Imam dos Ismaili muçulmanos. Ao som de cânticos devocionais procurei um lugar junto dos meus familiares mais próximos. As cerimónias que antecederam a chegada do Imam foram de recitação do Alcorão, de súplica e louvor, em várias línguas, desde o árabe ao farsi, até ao gujarati, inglês e português, permitindo-nos perceber, através deste colorido mosaico de diversidade, a comunhão e celebração da fé neste Imam. Nos ecrãs gigantes, preparados para acompanhar mais de perto o desenrolar do evento, havia a possibilidade de ir lendo não só a tradução dos cânticos como também os momentos da visita do príncipe Aga Khan, tanto fora como dentro dos salões do Darbar. Tal como circulava o rumor, o príncipe chegou acompanhado de quase todos os seus familiares. Depois de cumprimentar a liderança das diferentes jurisdições presentes na reunião, o Imam e os membros da sua família direta vestiram os seus robes cerimoniais e entraram com os ministros de culto (mukhis) do Centro Ismaili de Lisboa.
Num misto de emoção e de olhar antropológico, observei o deslumbre de um cortejo cerimonial onde em frente caminhava o Imam, seguido dos dois mukhis, e depois finalmente de toda a família Nurani, e ouvi o entoar de milhares de vozes recitando a salawat – allahuma saleh allah muhammad in wa’ale Muhammad – “oh Deus! que a Tua luz recaia sobre Muhammad e toda a sua progenitura”. Os procedimentos eram todos semelhantes aos de darbares anteriores e, por isso, a comunidade estaria já preparada para seguir o script usual.
No passado dia 11 de julho, o script de um darbar tradicional foi dramaticamente alterado. Depois de ouvir atentamente os cânticos e as orações de súplica, e depois de ter recebido as nazranas da comunidade através dos seus representantes, o Imam falou aos seus fiéis, como é esperado acontecer, e pouco depois, desceu de novo a escadaria para seguir para outros salões onde o aguardavam outros tantos milhares de crentes. A promessa era de que passaria por três destes salões, e que em cada um deles o roteiro cerimonial seria igual, provavelmente com missivas (farmans) diferentes e complementares às anteriores. Contudo, depois de ter saído da sala onde me encontrava junto a mais outros 12 500 crentes, eis que o Imam surpreende a comunidade global e o script normal de um darbar ficou alterado! O Imam e a sua família reaparecem nos ecrãs gigantes sem as suas vestimentas tradicionais, agora todos calçados, para receber um convidado de honra. E quem?, perguntariam. O nosso Presidente de Portugal, Professor Marcelo Rebelo de Sousa! Nos outros salões a comunidade desmoraliza na expectativa falhada de o Imam os vir visitar também. Sim, porque até ali, numa cerimónia religiosa nunca um não-ismaili poderia participar. O impensado e o impensável (Arkoun, 2002) aconteceriam numa circunstância destas. E foi exatamente isto que aconteceu. O Professor Marcelo veio ao Darbar e o Imam recebeu-o. O príncipe e a família vestiram de novo as roupagens religiosas e regressaram ao mesmo salão, desta vez o Imam trazendo ao seu lado o Presidente da República Portuguesa, desfilando os dois, seguidos da restante família, tal como antes, e sempre ao som dos salawat, desta vez ainda mais inflamados de alegria, surpresa, e de grande orgulho; afinal, aquela sala era a dos ismailitas portugueses, os mesmos que participam na cultura, na política e na sociedade portuguesas, e olham para os portugueses como seus pares nas batalhas quotidianas dos assuntos do País e da ordem nacional.
O Imam trouxe Marcelo para o mesmo palco onde antes se havia sentado e ordenou que se colocasse uma cadeira igual para o Presidente da República de Portugal ao seu lado e, tal como antes, os filhos e netos sentaram-se de um lado e do outro de ambos. E a cerimónia religiosa continuou. E Marcelo, um católico praticante, recitou o versículo 177 do capítulo 2 do sagrado Alcorão, onde se lê, entre outras coisas, o seguinte: “Não cabe ao Justo que vire a sua face para o Este ou o Oeste; mas cabe ao Justo (…) que use a sua riqueza, por amor a Ele, para os seus parentes, para os órfãos, para os necessitados, para o viajante, e para aqueles que pedem (…)” e terminou a sua leitura manifestando o desejo de que Sua Alteza “faça de Portugal a sua casa, para sempre”.
Não é possível, num só artigo escrever muito mais sobre o registo do meu olhar antropológico e simultaneamente Ismailita; mas é possível afirmar, com convicção, que uma nova era de ismailismo recomeçou a partir desta data, e que esta só se tornou possível porque Portugal e os portugueses somos todos nós, e porque esta é, e será, para sempre, a nossa casa. Como já o afirmei antes, o pluralismo não significa apenas a celebração da diversidade cultural e religiosa; o pluralismo é uma construção em perpétuo movimento. É um desafio; mas faz-se. E Aga Khan e Marcelo mostraram como se faz.
(Opinião publicada na VISÃO 1324 de 18 de julho)