Sou médico há 40 anos. Opções pessoais e políticas fizeram com que estivesse vários períodos sem exercer a profissão. Talvez por isso me tenha interrogado tantas vezes sobre o que pensarão os portugueses a respeito da Ordem dos Médicos (OM), que grau de informação têm sobre as funções que o Estado lhe atribuiu e que opinião fazem sobre a forma como ela defende o interesse público a que a lei a obriga. Interrogo-me apesar de saber que não há muitas outras instituições tão presentes na comunicação social como a OM. Os seus bastonários são supermediatizados, mais que muitas figuras do nosso jet set político. Mas, pergunto, tanta visibilidade tem significado mais transparência e mais conhecimento sobre ela?
A OM é uma associação pública profissional, a quem o Estado atribuiu um conjunto de competências e poderes que a Ordem deve exercer em benefício do interesse público. Não sei se todos os portugueses têm consciência de que são eles os primeiros destinatários das responsabilidades da OM. É a pensar neles que a Ordem deve atuar.
Este estatuto levanta um problema que, na minha opinião, está por resolver: quem escrutina a atuação da OM para além dos seus associados? Quem avalia se os seus recursos – muito circunscritos ao amadorismo dos seus membros, cujo empenho nunca é demais reconhecer – são suficientes para responder às exigentes funções públicas que exerce e se estão à altura da complexidade da prática médica e da sofisticação dos cuidados de saúde?
A OM, ao longo do tempo, tem defendido posições muito diferentes. Se pensarmos apenas nos anos da democracia – ignorando o percurso desde a sua fundação em 1938 ou dos seus primórdios em 1898 –, tivemos muitas “Ordens”: a do PREC que acabou em sindicato, a do 25 de Novembro onde se entrincheiraram os fascistas reciclados e os aliados do CDS contra o SNS e a Ordem dos tempos mais recentes que, depois de muitas voltas e contravoltas, abandonou a obstrução sistemática aos serviços públicos de saúde para se colocar no campo do SNS, ainda que com alguns intervalos.
Reconhecer esta evolução não me impede de condenar a campanha conduzida pela OM para cortar o número de alunos nas faculdades de medicina e reduzir o número de médicos, a pretexto de evitar o desemprego médico, espantalho agitado para amedrontar os futuros médicos.
Ouvimos alguns dirigentes da OM, com toda a leviandade, repetir que há médicos a mais, quando por todo o País, de norte a sul, do interior ao litoral, nas grandes cidades ou nas pequenas vilas, nos hospitais e nos centros de saúde se reclama mais médicos.
A Ordem dos Médicos não tem qualquer estudo que valide a tese de que temos ou vamos ter médicos a mais. Aliás, talvez se deva começar precisamente por aí. Ignora-se que agora é preciso formar médicos para o público e para o privado, exigência que não existia há dez ou vinte anos mas que, hoje, depois do grande boom dos hospitais privados, se coloca com uma enorme evidência.
As necessidades de formação são hoje por essa razão muito maiores. Invoca a OM que não há capacidade para formar tantos especialistas. Mas, pergunto, saberão os portugueses que é a própria Ordem que define quantos e que especialistas se formam por ano em Portugal? A OM está a usar essa competência – atribuída pelo Estado em nome de todos nós – para conseguir impor a redução de novos médicos e especialistas.
A solução não está em cortar nos estudantes de medicina nem nos futuros especialistas. A solução está em melhorar as condições de ensino nas faculdades e de formação nos hospitais e centros de saúde. A alternativa a termos mais médicos, os médicos de que o País precisa, é continuarmos a ter os médicos com um pé no público e outro no privado, quando não os dois no privado. Ou será que a OM prefere perpetuar as atuais perversidades?
Ética e qualidade dominam o discurso da OM mas não a sua política. A OM está rendida ao corporativismo e esqueceu o interesse público. Ao ministro da Saúde cabe a tutela da OM. A maior parte dos anteriores ministros apenas se preocupou em evitar guerras com os bastonários. Do atual ministro não se espera outra coisa que não seja reconduzir a OM ao respeito pelo interesse público.