A primeira vez que ouvi falar no nome de Rui Cardoso Martins foi pela boca do Zé, ou seja do escritor José Cardoso Pires, o meu melhor amigo. O Zé sempre foi um homem de poucas palavras e de muito poucos elogios. Era um leitor extraordinário na segurança do gosto, muitíssimo exigente no que dizia respeito à qualidade de um texto, sem concessões de qualquer espécie fosse no que fosse, sobretudo quando se tratava de literatura. Dizia, por exemplo:
– Posso ser amigo de um pedreiro, de um médico, de um arquitecto, de um jogador de futebol. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo.
De modo que era amigo de muito poucos. Tinha um faro de perdigueiro para o talento e um desinteresse total pela falta de qualidade. Falávamos todos os dias, estávamos juntos em muitos deles nos intervalos do trabalho. Um dia perguntou-me, assim de repente:
– Conheces o que faz um caramelo chamado Rui Cardoso Martins?
e eu fiquei calado a olhá-lo porque não tinha a mínima ideia de quem pudesse ser e desconhecia por completo aquele nome. O Zé acrescentou
– Escreve
palavra que era muito rara nele, mesmo ao referir-se a pessoas que faziam livros, ou antes sobretudo rara ao mencionar pessoas que faziam livros. E o Zé
– Tens de ler
o que era mais raro ainda. Demorou-se em silêncio, de olho a boiar no uísque, desceu até ao fundo do copo, voltou à tona:
– Escreve
e outro mergulho no uísque. Ao voltar trazia uma nova frase consigo
– Lê
seguida de outra mais comprida
– O que se produz neste país é uma merda mas este é bom e ainda por cima o cabrão além de dar-lhe bem tem humor.
O que era importantíssimo para ele, que não acreditava existirem bons escritores sem humor. Quantas vezes, por exemplo, andávamos às voltas com uma frase de Cervantes: “não se pode nada contra o céu sobretudo se está a chover.” Eu
– Escreve o quê, esse?
porque isto de letrados fia fino. E o Zé rente ao uísque, metade dentro, metade fora, de pupilazinha a furar-me:
– Coisas àcerca de tribunais, tão bem cozinhadas que nem se dá pelo fogão aceso. Um cabrão.
O que, nele, correspondia a um alto elogio. Por exemplo Proust era um cabrão, Saramago era Saramago só, sem direito ao título. E depois alargou-se um pouco àcerca da forma como o tal Rui Cardoso Martins calibrava a prosa, àcerca do equilíbrio que conseguia manter durante o texto inteiro, da forma como o andamento das palavras se mantinha fluido, sem caroços, da naturalidade com que o humor circulava nas veias dos parágrafos, à vista quando era necessário, meio escondido quando o não era e, no entanto, sempre presente, como sempre presentes a segurança da mão, o pudor da ternura, a leveza contida da compaixão, o respeito ao mesmo tempo distante e próximo, o pudor de estar ao lado do sofrimento, tocando-lhe sem lhe tocar, porque não é preciso mexer nas pessoas para gostar delas, nem mudar-lhes os traços e os gestos para as amarmos. Repetiu
– Cabrão
do interior do uísque, juntou-lhe um
– Fico à espera do que ele vai fazer a seguir
e desapareceu por completo no copo. Ou seja estava cá fora mas estava todo lá dentro, a moer, a moer, e eu a ouvir-lhe as rodas dentadas da cabeça.
– Fico à espera do que ele vai tramar agora
porque o Zé nunca foi invejoso e um bom naco de prosa, vindo fosse de quem fosse, alegrava-o sempre. Neste caso alegrava-o aquilo que o dito Rui Cardoso Martins fabricava
– Lê
aquilo que o dito Rui Cardoso Martins estava a conseguir, e ele, para espanto meu, tinha a certeza que acreditava no caramelo. Havia uma espécie de contentamento na sua cara lavrada de rugas, ossos, pregas, que um sorriso, volta e meia, transformava numa espécie de fauno irresistível. Por essa época sofria com um livro
(ele sofria como um cão com os livros, afirmava-me sempre
– É necessário que a gente sofra para que o leitor tenha prazer
enquanto eu pensava
– Olha a novidade
enquanto eu respondia
– Olha a novidade
e ele me poisava a mão no ombro a desfazer-me os ossos
– Meu cabrão, meu cabrão
eu, para ele
– Começo a ficar farto das tuas declarações de amor
a desfazer-lhe os ossos também porque não gosto de ficar aleijado sozinho)
nessa época sofria como um cão com um livro e ainda arranjava tempo dentro de si para se preocupar com o fulano Rui Cardoso Martins, que escrevia coisas nos jornais, eu que desconfio das criaturas que escrevem coisas nos jornais, quer dizer não acredito lá muito no seu talento. Estávamos nisto, calados, quando o Zé me intimou
– Lê
num tom quase urgente que não lhe era habitual. Então fitámo-nos um ao outro da maneira que usávamos sempre quando nos fitávamos um ao outro. Só que, desta feita, o seu
– Lê
era imperativo. Sempre que um de nós falava assim ao outro o outro obedecia. Então fui ler, e tudo aquilo que o Zé me tinha dito estava lá de facto. De modo que quando o Zé me perguntou
– Leste?
acenei-lhe que sim. E de modo que quando o Zé me perguntou
– Que tal?
Eu, que não bebo, quase tive vontade de pedir um uísque para mim, no intuito de lhe responder, lá de baixo
– É tão cabrão como a gente.
E julgo que não é preciso acrescentar mais nada.