
Ilustração Susa Martins
Tenho muita pena que tenham acabado, por motivos que me parecem, no mínimo, discutíveis, com o Hospital Miguel Bombarda, onde três gerações da minha família trabalharam, o meu tio avô, o meu pai e eu, instituição com uma história única. Antigo convento transformado em hospício pelo Duque de Saldanha, depois de uma histórica visita de D. Pedro V ao Hospital de Todos os Santos, agora Hospital de São José, onde o rei se indignou com as condições de vida dos então designados doentes morais, a apodrecerem, acorrentados, na palha da cave. Miguel Bombarda transformou-o numa casa para a época modelar, revolucionou os costumes e o tratamento de doenças ainda hoje misteriosas, foi assassinado no seu gabinete por um doente, a pedir
– Não o matem que é um pobre louco
provocou o suicídio do Almirante Reis, comandante militar da Revolução Republicana, da qual Bombarda era o chefe civil, quase aniquilando o golpe de Estado que meia dúzia de homens de grande valor teimaram em levar por diante. Bombarda deixou uma obra importantíssima, quer do ponto de vista médico, quer do ponto de vista social, mudou hábitos e costumes, escreveu bastante, tratou o Poeta Ângelo de Lima, de que Orpheu publicou um dos melhores sonetos da nossa língua, o célebre
Pára-me de repente o pensamento
e, a pedido de Bombarda, escreveu uma autobiografia notável. Ainda lá encontrei a sua história clínica, escrita pelo punho do director, bastantes poemas e estudos para a bandeira nacional que não foram aceites. De resto bastante gente ilustre esteve ali internada, Roque Gameiro, Josefa Greno, etc., lembro-me de ver o cérebro do homem que assassinou Sidónio Pais, no laboratório que o meu pai coordenava, dali partiam os doentes operados pelo meu tio Pedro Almeida Lima, nas primeiras leucotomias que Egas Moniz mandou fazer, na época em que o hospital era orientado por um homem notável, Sobral Cid, que, por razões do ponto de vista histopatológico, tinha todos os motivos científicos para não acreditar nelas mas que resultaram em cheio por outros motivos
(o meu pai:
– O mestre Egas inventou a leucotomia por não saber anatomia)
a neurocirurgia portuguesa nasceu ali, através desse meu tio, que Egas Moniz mandara aprender acho que na Escócia, inventou a arteriografia
(o meu pai, que foi o seu último discípulo
– Mas tinha génio)
e lembro-me de ainda o ter visto, de mãos deformadíssimas pela gota, com um capachinho horrível, como me recordo do meu pai ter autopsiado o notável artista plástico Stuart Carvalhais, periodicamente internado no Bombarda em consequência do seu alcoolismo crónico. Aguentava-se durante uns tempos bebendo só água
(pedia aos amigos que o tratassem por Stuart Carvalhelhos)
e não demorava muito tempo em regressar às bujécas e a novo internamento. Não me esqueço do meu pai contar à mesa enquanto jantávamos, que o tinha autopsiado naquele dia como não me esqueço da sua emoção: um artista, caramba. Aliás o mestre Egas insistia com os discípulos
– Não se cobra dinheiro a artistas
frase escrupulosamente cumprida e graças à qual fui conhecendo alguns, porque o meu pai os levava para casa a fim de jantarem connosco, quando os via no consultório. Apareceu, por exemplo, com o pintor José Escada, apareceu, por exemplo, com o pintor Vespeira e eu esmagado de admiração e pasmo por aquelas criaturas que tinham acesso directo ao mundo do ilimitado e do futuro, como escreveu Apollinaire, a que eu desejava pertencer, a que, na minha orgulhosa patetice de criança, pertencia já. Eles iam-se embora e eu a tocar, reverentemente, os talheres de que se haviam servido. O meu pai falava também de um pintor e gravador francês, pelo qual parecia ter grande respeito, lá internado não sei com que diagnóstico. Ao referir-se a ele o meu pai dizia sempre Monsieur Anatole
(nunca lhe escutei o apelido)
e recordo-me de nos dizer que, ao perguntar a Monsieur Anatole se tinha filhos, recebeu como resposta
– Non monsieur, je ne fabrique pas des cadavres
frase que o deve ter impressionado imenso porque o escutei repeti-la ao longo dos anos, pensativo, a moê-la. Volta e meia, num silêncio qualquer, lá vinha ela
– Non monsieur, je ne fabrique pas des cadavres
como vinham as velhotas grávidas do Menino Jesus, a tricotarem casaquinhos de lã para os invernos da Divina Criança, vários Salazares, vários reis de diversas épocas, o dono do casino de Montecarlo, o dono da Fundação Gulbenkian, o dono de todos os clubes de futebol de Portugal, quase todos eles com o delírio da grandeza típico da sífilis, que começava a perder poder com injeções de penicilina. Pergunto-me o que aconteceria se a aplicássemos a cardeais, ministros, gestores, outras criaturas do género. Voltariam a ser os pobres diabos que eram antes ou continuariam a delirar patetices? Dias depois do 25 de Abril eu estava de serviço na Urgência, em plena febre revolucionária, era de noite, havia um silêncio relativo porque, não sei porquê, faltavam os bêbedos e os sujeitos com over dose do costume e começo a ouvir uma voz em berros enormes
– Viva a União Nacional!
– Viva o professor Marcelo Caetano!
– Viva a polícia política!
e outros gritos no género, do outro lado da porta, que se iam aproximando com frases deste tipo, numa barulheira feroz. Pensei
– Se calhar houve uma contra-revolução
pensei
– Se calhar o 25 de Abril acabou
e estava a moer estes pensamentos negros quando a porta se abriu, e o sujeito dos Vivas entrou. Vinha de camisola de forças, entre dois sujeitos de bata, clamando sem descanso. Com o auxílio de umas injeções foi aceitando devagarinho a democracia. Não há como umas ampolas para tratar ditaduras. Qual o motivo de não se haverem lembrado há mais tempo? O que se teria poupado em guerras, tiros, mortos a dar com um pau, coisas horríveis? E o que há por aí de banqueiros, primeiros ministros, ministros, administradores de empresas, etc., a necessitarem de uma picadelazinha, que nem sequer dói muito e os tornaria normais? De que é que estão à espera para fazer de Portugal um país com pessoas de carácter, quando um enfermeiro e uma seringa chegam?