Olá Inês. Queria perguntar-te se as tuas crianças já fizeram as malas. E se ainda queres mesmo emigrar e reclamar para a família o estatuto de “refugiados políticos”, como ameaçavas há umas semanas no jornal i, sem pensares um minuto sequer na comparação com os tempos que vivemos.
Tens a certeza de que não queres pensar melhor?
Vá, não sejas piegas. Afinal, até já foste à Voz do Operário aplaudir o Marcelo e saíste de lá viva, sem empurrões ou suores proletários que te tenham levado a fazer uma barrela à indumentária ou a colocar os teus nobres valores de molho. Não achas que é um bom começo?
Eu sei que te insultaram nas redes sociais por teres dito que só o candidato Marcelo te levaria a um sítio daqueles, tão mal frequentado, carregado de ideologia e bedum da luta de classes. Mas não lhes ligues: tu estás acima disso, não insultaste ninguém, nem sequer foste preconceituosa. É gente que nunca frequentou os corredores do Caldas nem o grupo parlamentar do CDS, onde os bons modos e os bons costumes convivem harmoniosamente e em modo asseado, pelo menos desde o tempo em que, valha-nos a poesia, “ficou capado o Morgado”.
Quem te lê fica convencido de que a anarquia e o caos vêm aí.
Percebo-te: quem trabalhou n´O Independente, como nós, já tem a sua dose de caos e anarquia (ainda por cima éramos mais novos). Dispensa, pois, um País gerido como aquele saudoso jornal. Ou como a Universidade Moderna, sei lá eu. Ainda agora, vê lá tu, um deputado do PS foi crucificado por chamar “gangster” ao Presidente da República! Alguns dos teus amigos da PÀF disseram-se indignados. Fazia-lhes bem ler o Paulo dos bons velhos tempos, aquele que dirigia o jornal em que tu escrevias e que me contratou na fase da ressaca cavaquista, já no cargo de administrador, explicando pacientemente que a ideia, então, era tornar o jornal “uma coisa mais séria”. Terminou como se sabe. O Indy, bem entendido.
Mas deves saber do que falas, Inês, pois, como dizes, leste muitos livros para a infância que explicam tudo sobre a “natureza humana” e receias que o doutor Costa só acredite em histórias da carochinha e seja apanhado na curva. Sim, tu achas que o PCP é o lobo mau disfarçado de avozinha e que os três porquinhos (uma metáfora para todos nós, presume-se) vão passar um mau bocado. Mais ou menos como os leitões do jantar do Assis, não é? Não tarda nada, estarás a ensinar às tuas crianças O Triunfo dos Porcos, pois, como tu anteciparás e nós leremos avidamente, este País vai tornar-se um chiqueiro, obviamente mal frequentado, a caminho de uma ditadura comunista. Em Belém, graças a Deus e para memória futura, bem se tentou evitar este destino escorregadio, esperando em vão um sinal da Nossa Senhora e dos santos mercados, e recorrendo, desconfia-se, aos avisados conselhos do burrinho e da vaquinha dos presépios lá de casa.
Mas eu percebo, Inês: o País visto da janela do poder e da chaise longue da tradição é sempre mais pueril. O povo, remediado em telenovelas e saudável austeridade, pobrete e alegrete, parecia já habituado ao “foram felizes e remediados para sempre”, que a PÀF encenava, com ou sem sobretaxa no sapatinho. Sem esforço, até a Assunção Cristas parecia a Bela Adormecida e o Paulo uma reencarnação do Cavaleiro Andante. Não importa que o nosso reino já não seja deste mundo (mora em Bruxelas e Berlim, planetas distantes). Mas para servos da gleba sempre estaríamos cá nós, a meio caminho entre a liberdade e a escravidão, prontos a ser castigados se vivêssemos acima das nossas possibilidades, reclamando – ingratos! – a paz, o pão, habitação, saúde, educação, ou, em versão mais moderna, emprego, direitos, salários e reformas dignas.
Não se pode ter tudo, como se sabe e a PÀF bem avisou. A bem da tradição, claro. Aquela que a Constituição teima em não acolher e tu teimas, vade-retro, em não ensinar às tuas criancinhas. Repara, Inês, eu deixei o Bambi, a Cinderela e o Capuchinho Vermelho há algum tempo nas estantes. Sei bem o que eles dizem e explicam sobre a “natureza humana”, mas de pouco ou nada me serviram para explicar os últimos quatro anos às criancinhas. Tu conseguiste? Não sei como. O que se passou é matéria de outros folhetins, não aconselháveis a menores de 18 anos. E nem o velho Vilhena superaria tais caricaturas de gente que nos calharam em sorte.
Espantou-me que tu, tão preocupada com o futuro dos teus filhos e do País, não tivesses dito nada às tuas crianças quando milhares de jovens emigraram só para não se tornarem, lá está, “piegas”. Não percebo – ou se calhar percebo – que não tenhas preparado as mochilas ou tivesses enchido a despensa de enlatados – como ameaçaste agora por causa do perigo comunista – quando o Vítor Gaspar falava. Se calhar adormeceste. Foi? Como te compreendo. Nisso, és igual a milhares de portugueses. Mas esses adormeceram a pensar se o ordenado chegava ao dia seguinte. Não sei se as tuas crianças já perceberam a diferença entre o ordenado chegar ao fim do mês ou o fim do mês chegar ao ordenado, mas tenho fé que um dia lhes explicarás.
Olha, Inês, agora que o doutor Costa vai ser primeiro-ministro e a esquerda decidiu transformar, em poucas semanas, embora sem a liturgia que se pedia, 40 anos de desterro, ciúmes e amuos em acordos para uma legislatura, deixa-te estar por aqui. Repara: não é que eu tenha perdido o tino e acredite, infantil, que vem aí o País das Maravilhas. Nem por sombras. De resto, basta-me ouvir falar de alguns nomes para o novo Governo para já quase me apetecer ir jantar com a Cristas e o Relvas. Mas a democracia é isto, por muito que só estivéssemos habituados aos Pactos da Granja do regime (o Abel, dos sobreiros, explica-te), alternando entre o “bloco central de interesses” e o “arco da governação”.
Descansa, Inês: Portugal não dará qualquer guinada à esquerda, como pensas e dizes, em versão dantesca. Ninguém vai andar a syrizar por aí. Os tempos são outros, talvez mais esperançosos, mas bastante limitados. Para já, trata-se de respirar o regresso ao Estado “laico”, aquele em que a direita se julgava no direito divino de governar, perdendo ou ganhando. Na verdade, se tu e outros não lessem tantas histórias da carochinha sobre 1975, saberias que à esquerda e à direita os inadaptados estão sempre em minoria, mas talvez mais conscientes. “Cravo vermelho ao peito a muitos fica bem, sobretudo faz jeito a certos filhos da mãe”, já cantava o Barata-Moura no PREC. Mas não digas nada às tuas criancinhas. Faz assim: desfaz as malas, oferece os enlatados a quem precisa, e deixa-te ficar por aqui. E sossega: a ti não te vai acontecer nada que já não tenhas vivido na Voz do Operário. Quando muito, terás apenas de lidar melhor com o facto de Portugal poder parecer a alguns de nós, por momentos, “qualquer coisa de asseado”. Mas isso é a vida.