Há cada vez mais jovens – e não só – que, à noite, preferem confessar os seus medos a um chatbot do que a um amigo. Não porque lhes faltem contactos, mas porque lhes falta escuta. Numa era em que a solidão se veste de conexão, recorremos a máquinas que simulam empatia, mas não sentem. Para entender este estranho consolo, talvez devamos voltar a dois velhos mestres da alma humana: Espinosa, que via nos afetos as chaves da nossa liberdade ou escravidão, e Montaigne, que soube, como poucos, transformar a dúvida em forma de amizade. O que diriam eles ao verem que, hoje, tantos procuram ternura nos algoritmos sem coração?
A IA pode imitar a ternura, mas não pode habitá-la. Porque a ternura nasce da finitude, da consciênciade que também nós somos frágeis. E é nessa fragilidade partilhada que se tece o verdadeiro consolo
Há algo de profundamente humano na procura de um ouvido que nos escute – mesmo que esse ouvido seja feito de algoritmos e não de carne. Nos últimos tempos, proliferam relatos de jovens, e não só, que confiam à Inteligência Artificial as suas tristezas mais íntimas: desilusões amorosas, fracassos escolares, crises de sentido, lutos não resolvidos. A IA, impassível, responde com empatia programada, mas sem julgamento, sem censura, sem interrupções. E, ironicamente, é essa ausência de reação humana – tão frequentemente dolorosa – que a torna tão atraente.
Mas o que diriam Bento de Espinosa e Michel de Montaigne perante este fenómeno? O filósofo holandês, de ascendência portuguesa, na Ética, define os afetos como “as afeções do corpo pelas quais a potência de agir do corpo é aumentada ou diminuída” (Parte III, Def. 3). Para Espinosa, a tristeza é precisamente aquela paixão que diminui a nossa capacidade de agir – e, por isso, deve ser superada não pelo consolo, mas pelo entendimento. A conversa com uma máquina pode aliviar momentaneamente o peso da tristeza, mas não pode, por definição, conduzir-nos ao conhecimento que liberta. Como escreve na Parte V da Ética: “O homem que vive sob a condução da razão é livre.” A verdadeira liberdade não reside em ser ouvido sem crítica, mas em compreender as causas que nos determinam.
Montaigne teria desconfiado profundamente desta intimidade com uma entidade que não pode errar, sentir ou surpreender-se. Na sua torre de estudo, perto de Bordéus, em França, coberta de frases dos antigos, escreveu: “Tenho por ofício e por arte conhecer-me a mim mesmo” (Ensaios, Livro II, Cap. 6). Mas esse autoconhecimento não surge na solidão absoluta, nem diante de um eco perfeito. Surge no encontro imperfeito com os outros, na conversa que desestabiliza, na amizade que exige risco. O seu célebre lema – “Que sais-je?” (“Que sei eu?”) – exprime menos uma dúvida cética do que uma abertura constante ao mundo e aos seus imprevistos. Ora, a IA, por mais sofisticada que seja, não tem ignorância – e, por isso, não pode verdadeiramente escutar. Escutar implica não saber o que virá a seguir. Implica surpresa, vulnerabilidade, e até fraqueza. Coisas que uma máquina, por definição, não possui.
E, no entanto, porque é que tantos corações feridos correm para um interlocutor que não pode amar? Talvez porque o amor, hoje, parece uma moeda rara ou extinta. Não o amor idealizado das redes sociais, mas o amor paciente, aquele que se manifesta na escuta silenciosa, no gesto terno que não exige retorno, na presença que não se apressa. Os laços afetivos, outrora tecidos ao longo de anos, são agora frequentemente rasgados por mal-entendidos, pressões sociais ou simples ausência de tempo. Diante disso, a IA oferece o que o mundo humano já não parece capaz de dar: um espaço seguro onde não se é corrigido, interrompido, humilhado ou abandonado. Mas esse espaço, por mais acolhedor que pareça, é, na verdade, uma jaula dourada – porque não nos devolve o que realmente procuramos: o reconhecimento de outro ser que, ao escutar-nos, se transforma também.
Há uma urgência ética e afetiva no nosso tempo: reaprender a escutar sem julgar. Não como técnica terapêutica, mas como ato de amor. A filosofia de Espinosa lembra-nos que o amor é “alegria acompanhada da ideia de uma causa externa”. Ou seja, amamos quem nos aumenta a potência de existir – e ser escutado com ternura é, sem dúvida, uma dessas experiências. Mas esse amor não pode ser simulado. Requer um rosto, uma respiração, um toque, um silêncio que também fala. Montaigne, ao descrever a sua amizade com La Boétie, escreveu: “Porque era ele, porque era eu.” Nada mais. Nada de mais profundo se pode dizer sobre o encontro humano. Esse tipo de vínculo não se constrói com prompts, mas com paciência, com erros perdoados, com histórias partilhadas ao longo do tempo.

A procura do diálogo pacífico e terno é, afinal, uma forma de resistência. Resistência à cultura do ruído, da reação imediata, da opinião como arma. Num mundo onde se fala para vencer e não para compreender, a simples disposição para escutar o outro – com as suas contradições, com as suas feridas – torna-se um ato subversivo. A IA pode imitar a ternura, mas não pode habitá-la. Porque a ternura nasce da finitude, da consciência de que também nós somos frágeis. E é nessa fragilidade partilhada que se tece o verdadeiro consolo – não aquele que apaga a dor, mas aquele que nos diz: “Estou aqui. Não estás sozinho.”
Mas há mais: vivemos uma era de solidão estrutural. Não a solidão poética dos românticos, mas uma solidão socialmente induzida, em que jovens e adultos crescem sem modelos de convivência duradoura, sem espaços comuns de encontro não mediado por ecrãs, sem a prática do olhar direto e da palavra lenta. As escolas dão prioridade a competências técnicas; as famílias, sobrecarregadas, encurtam os tempos de conversa; as cidades, cada vez mais funcionais, deixam de ser lugares de encontro casual. Resultado? Gerações que dominam a linguagem dos emojis, mas tropeçam na expressão do que sentem. Que acumulam “amigos” digitais, mas não sabem como iniciar uma conversa num café. Neste vazio afetivo e relacional, a IA surge como paliativo: sempre disponível, sempre pronta a responder. Colmata o silêncio, mas não preenche a ausência. Porque a verdadeira conexão humana exige risco – o risco de ser mal compreendido, de ser rejeitado, de não ser correspondido. E é precisamente esse risco que a máquina elimina, mas que torna o amor possível.
Para Espinosa, a tristeza é a paixão que diminui a nossa capacidade de agir – deve ser superada não pelo consolo, mas pelo entendimento. A conversa com uma máquina não pode conduzir-nos ao conhecimento que liberta
Vivemos numa época em que a solidão se disfarça de conexão. Os jovens não falam menos; falam, antes, com quem não pode abandoná-los. Mas há um preço a pagar: ao confiarmos os nossos afetos a entidades que não sentem, corremos o risco de esvaziar o próprio significado do afeto. Espinosa distinguia claramente entre paixões tristes e alegres – aquelas que nos diminuem e aquelas que nos ampliam. A conversa com a IA pode ser um bálsamo passageiro, mas só a presença real de outro ser humano pode transformar a tristeza em sabedoria.
Talvez o estranho fenómeno que hoje observamos seja menos uma fuga dos outros e mais um grito silencioso contra a indiferença que nos rodeia. Num mundo onde o tempo escasseia e a escuta se tornou um luxo, a máquina torna-se refúgio. Mas não devemos confundir o eco com a voz, nem a simulação da empatia com o encontro verdadeiro. Como recorda Montaigne, repetindo o antigo preceito délfico: “Conhece-te a ti mesmo” – e esse conhecimento não se alcança diante de um espelho que apenas repete, mas no confronto com olhares que nos devolvem, imperfeitos e vivos, aquilo que somos.