Na semana passada enderecei um artigo ao Henrique Raposo. Era uma resposta a um primeiro texto seu. O tema era liturgia; mas bem podia ser Gaza, ou cebolas. Porque o Henrique Raposo sacoleja em confusões com uma prontidão quase militar, como um soldado que marcha ao som da sua própria corneta, embriagado na ilusão de zelo. Junta preconceitos como quem colecciona cromos: a proporção delirante entre o fervor formal de certos fiéis e uma suposta pusilanimidade no voluntariado, ou o diabo enquanto anedota.
O texto era para ser tomado como um reparo fraterno. Ingenuidade minha.
E o Henrique respondeu. Na resposta, ainda ensaiou alguma refutação. Mas foi superficial. E enganador. Veja-se, a esse propósito, quando afirma que os judeus rezam na língua original porque a falam. Não é verdade. O hebraico litúrgico não é o hebraico moderno que os israelitas usam na rua, e muito menos o francês ou o inglês que os judeus da diáspora falam em casa. A liturgia judaica preserva uma língua antiga e distinta do uso comum. Tal como o catolicismo preservou o latim.
O Henrique tentou disfarçar um argumento e havia uma razão para isso.
Explico. Quando o Henrique Raposo responde não é comigo que fala. É com o “Dr. Fúria”: uma personagem da sua autoria que serve não para trocar ideias, mas para as usar como trampolim para falar de si próprio, acrescentando mais uma página à já volumosa saga “Eu, Henrique”. E, nem de propósito, o tema calhou ser religião. É mesmo. Não o catolicismo, do qual todos somos aprendizes, mas o mais antigo credo que Henrique professa; do qual é fiel, sacerdote e profeta: ele mesmo.
É pena. Perdeu-se uma óptima oportunidade para abrir alguma clareza sobre um tema obscurecido pela ignorância e o desdém. Mas o Henrique fez o que o Henrique se especializou em fazer. E por isso não vale a pena insistir sobre os méritos dos argumentos. Quando escreve sobre alentejanos, o feminismo, Trump ou a Missa, é sempre sobre o que o faz ter razão contra todos. Quando diz “os alentejanos irritaram-se” ou “os católicos irritaram-se”, o que realmente está a dizer é “eu provoquei uma reacção, logo venci”. O critério de verdade é sempre a quantidade de pessoas que deixou incomodadas.
Então, como todo o narcisista, projecta. Quando é o próprio que apresenta o seu caso numa grelha marxista, condenando os bem-nascidos à sua bem-nascença, e os mal-nascidos à condição de intrusos, resolve acusar-me de usar “linguagem de esquerda”. Uma disputa pueril numa espécie de recreio ideológico. Não se percebe muito bem porquê, nem como, mas arriscou dizê-lo. Tal como um dia arriscou considerar os educadores de infância masculinos, violadores em potência. Também aí arriscou. É um homem ousado. Como todo o bom megalómano. (É preciso um para reconhecer outro.)
O Henrique diz que é trabalhador. Um estivador da pena que passou muitas noites em claro para chegar onde chegou. Não duvido por um segundo. Pertence a uma geração que veio da periferia e teve o desplante de atirar pedras às certezas das vitrines lisboetas: Bruno Vieira Amaral, Tiago Cavaco, etc. No caso de Raposo, a narrativa auto-messiânica do marginal que veio da planície, da pobreza, para chocalhar os doutos da cidade dar-lhe-á força narrativa porque vende bem, mas também o deixa prisioneiro. Nunca poderá admitir estar errado, porque a sua autoridade não vem do argumento, mas dessa pose de deslocado que se cristalizou em tique nervoso
Henrique acusa-me de fariseu, mas é ele que escreve sempre como um fariseu de si próprio, o que entra no templo para rezar “graças a Deus não sou como estes doutores, nem como estes beatos”. No fim, a sua resposta não é sobre liturgia, nem sobre ajoelhar, nem sobre latim, nem sobre nada. É apenas sobre Henrique Raposo. Sempre sobre Henrique Raposo. Um altar portátil onde o único santo é o próprio.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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