Não há assunto mais vivo do que a morte. E a morte do Diogo Jota, que nos bateu como uma tragédia imoderada na vida de um rapaz contido, obriga-nos a olhar de frente para o buraco: essa escuridão católica, esse sorvedouro com nome próprio: escrevi sobre ele ainda ontem. Mas não bastou. Falta falar sobre o enterro.
Foi o Filipe Costa Almeida, o meu provocador predilecto, que me espetou a farpa: “Olha lá, tu que andas sempre nessas fantasias de semiótica e metafísica, vais mesmo deixar passar o funeral dos irmãos Silva?”. Eu, claro, não deixei. Não podia.
E eis que a morte mediatizada me levou à morte comunitária.
Comecemos pelo fim. Pelo sepultamento. O gesto final. A sinédoque mais justa da morte. Contudo, hoje não se enterra. Queima-se. Como se o Inferno tivesse passado a constar dos regulamentos camarários. Como se o corpo fosse lixo reciclável. Basta ir a um desses centros de incineração civilizada para perceber tudo: o padre não sabe lá muito bem o que fazer, os vivos não sabem porque vieram, e os mortos… bem, os mortos estão mortos. Se dúvidas houvesse sobre a vertigem pagã das sociedades ocidentais, basta fazer uma visita àqueles sinistros complexos onde os corpos — os nossos sacrários de carne, a última coisa que nos resta — evaporam, apagam, desaparecem. É um estarmos assim ali porque sim, sem qualquer esteio litúrgico que o ampare e justifique. É fogo sem fumo. Um gesto terminal, desprotegido, vítreo. Sem mediação sacramental.
Concedo, é semiótica e metafísica. É o sintoma. O grande sintoma. Perdemos o símbolo. (Acompanhe agora, leitor, a guinada geográfica e espiritual). Mas não em Gondomar.
Gondomar! Nome de escudo. Nome germânico; podia ser bíblico. Ali, naquele Norte onde “ainda” é o último advérbio da resistência, ainda se enterra. Ainda se joga à malha. Ainda há colectividades. Ainda se acredita. Ainda se devolve o pó ao pó do qual o pó foi feito. Como se nunca se tivesse deixado de crer na doutrina da ressurreição dos corpos. Como quem diz: pelo sim pelo não, deixa estar quieto.
O meu avô Barbosa dizia sempre: “Não bulas.” Era uma ordem teológica. Uma doutrina ancestral que valia mais que mil encíclicas. Era o mandamento secreto do Norte: não mexer. É que ali sabe-se (sabe-se no osso) que há coisas que é para deixar como estão. Porque aí, talvez, quem sabe, um dia, se regresse. Um católico acredita nisto. E o Norte é católico.
O que vimos naquele funeral foi uma Igreja ainda de pé. As pessoas foram. Estavam lá. Gente de todas as idades, de todas as posses e de todas as poses. Contra todas as expectativas, contra tudo o que nos separa uns dos outros, as pessoas ainda se dirigem para um templo para homenagear os seus mortos. Para rezar por eles.
É que há aqueles que pensam, e muitas vezes dizem sem vergonha, “eu não gosto de funerais”. E não põem os pés no cemitério. Dizem-no com aquele ânimo de que não é nada com eles. O que é verdade; não é, de facto. Mas é esse o ponto. O funeral é o anti-eu: contra a cultura narcisista, contra a privatização das emoções; aponta para o fundo comunitário da morte. É o derradeiro confronto com o outro, no qual não estão em causa as nossas predilecções ou simpatias. Trata-se da vitória final da anulação sobre os elementos. É sobre quem morreu. Sobre o corpo, esse vestígio que deixamos quando nos vamos. Como uma peça de roupa que se deixou para trás.
Sir Roger Scruton, outro dos nossos avós — o inglês —, dizia que, no deslumbramento da abundância, não conseguimos discernir facilmente as coisas sagradas, “que brilham mais claramente na escuridão”. Pois naquele dia de sol em Gondomar, havia t-shirts pretas. Uns fatos sem gravata. Umas coisas assim, entre o desadequado e o insípido. Era a sobriedade possível num mundo que há muito escolheu o espalhafato e a desordem.
Será mais difícil discernir o sagrado nestas circunstâncias? Presumivelmente. Mas é, em primeira instância, uma questão de presença. É preciso acordar, tomar banho, sair de casa. Sair de nós mesmos. É preciso lá estar. Como voluntários, nas cercanias do grande medo. Gondomar não é um mau começo. Uma Capela chamada Ressurreição não é um mau começo.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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