Sábado passado fui à Caminhada pela Vida. E é importante começar assim: “fui”. Porque neste tema, o simples acto de estar já compromete, já queima, já classifica. E fui sabendo que aquilo é uma derrota com pernas. Começa logo no nome. “Caminhada.” Como quem vai ao pão. Como quem vai ali e volta já. Uma tentativa delicada, quase feminina, de não ferir ninguém com demasiada convicção. De não dizer “Marcha!”. Mas o que está em causa é precisamente isso: a convicção. Ou a falta dela.
Há muitos anos, colei cartazes, tive conversas difíceis, aborreceram-me — e, francamente, não era ali que escolheria estar numa tarde ensolarada de Sábado. Mas lá fui. Por obstinação. Por fidelidade. Mas sobretudo porque o meu amigo Filipe Costa Almeida — que se esquece de tudo menos disto — me avisou uma hora antes. Não é extraordinário? Soube uma hora antes. E sou, imagine-se, um católico informado.
Talvez essa falta de informação justifique o número: 145 pessoas e um mártir de fato e gravata — Paulo Lopes Marcelo, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros que espero não comprometer com esta crónica. 145: número suficiente para encher uma tenda de casamento. Um casamento tragicamente beto (até porque, hoje, ainda há quem se case).
É que esta é, talvez, a manifestação mais socialmente marcada de Lisboa. E, ainda assim, pouco tem de elitista. Há ali um tipo de beto muito específico: o beto-errado — para mim, o melhor tipo de beto e o único que eu quero ser. Quem lá está não são os da Comporta, nem os que jantam com cardeais por desporto. Esses têm outros fóruns — mais discretos, com melhor iluminação. Os que ali estavam eram outros. Uns
remediados que, se a vida nos corresse melhor, talvez ali não estivéssemos. Éramos os endividados com os filhos em colégios católicos e aquecidos com os casacos encerados herdados das primas – contei quatro iguais ao meu.
Gente deslocada, mas no sítio certo.
O mal-estar era geral. Houve até pessoas que, na mais abjecta pusilanimidade, atravessaram a rua para não terem de cumprimentar um conhecido. Há medo do tema, sim. Mas há sobretudo medo da companhia. Medo de serem confundidos. Com quem? Com os que rezam alto demais, com músicos já fora de moda, com professores celibatários, com os irmãos exagerados que preferem esconder. A vergonha é transversal e é democrática. Até uma senhora de um movimento religioso pedia aos de um outro que se calassem. Ninguém sabe muito bem qual é o tom certo. Poucos sabem escutar. Quase ninguém quer parecer demasiado entusiasta. Mas, ainda assim, lá estão. E isso vale qualquer hesitação.
Do outro lado, dois civilizadíssimos cavalheiros vestidos de linho e panamá comentavam com resignação: “Isto é mais do que uma questão religiosa. Isto é uma questão civilizacional. É uma coisa humanista.”
Havia também famílias. Muitas. Numerosas. Daquelas que hoje se olham com desconfiança. Mas estavam ali com uma serenidade difícil de classificar. Nem entusiasmo, nem vergonha. Apenas presença.
Talvez por isso só as crianças estejam realmente bem. As crianças e os pré-adolescentes. Esses ainda vão com aquela fé sem mancha que o mundo se encarregará de lhes roubar com o tempo. Os familiares mais velhos já não aparecem. Já perceberam que é mais seguro ficar em casa.
Já se repetiu muitas vezes. E o tempo passa. Mas a injustiça não: continua a ser cruel destruir uma vida quando, protegida, se desenvolve. A grande velocidade. Uma vida inocente. Que um dia todos fomos.
E eis que o aborto se tornou no grande interdito. A questão que ninguém quer tocar. O menos sensual dos temas, por ser aquele que estraga a sensualidade. E esta é a questão que me parece fundamental: porque é que este tema provoca tanta aversão? Por isto: há uma espécie de dogma sensual que todos interiorizámos e nos prende a alma.
E quem foge são, sobretudo, os católicos; os que há 20 anos ali estariam, ali estiveram. Fogem por pudor, por cansaço, por não saberem já como lidar. Porque, ao ser defendido, o tema obriga a olhar para a vida inteira. Posso exprimir-me em público contra o aborto e ser a favor da fornicação? Difícil. A organização vital das pessoas não está pensada para isso. Ser pelo aborto é ser pela fornicação e por um modelo de vida desconforme com a gramática dominante. E isso, para a burguesia, é imperdoável.
Hoje tudo tem de ser sexy. As causas têm de ser sexy. A ecologia é sexy. A Ucrânia é sexy. O aborto não. O aborto é o mais anti-sexo que existe: por destruição simbólica. Porque o aborto é corpóreo. É grotesco, suja, tem cheiro. Envolve sangue, sofrimento, consequência. O aborto vem dizer que o prazer não é um fogo-fátuo que desaparece por si só. Que há um depois. Que o sexo pode matar. E ninguém sabe lidar com isto. Dá um péssimo tote bag.
É o velho pudor burguês que Barthes descreveu. Não falamos das coisas. Do sexo, do dinheiro, do corpo. E o aborto faz bingo. Um tema que não pode ser discutido sem nos sujarmos.
No entanto, é exactamente por isso que vale a pena. Pela lama. Pela ausência de estilo. Porque não há estratégia. Não há esperança política. Mas há teimosia. E há fidelidade. E, de vez em quando, há a Graça. Ali, no meio daquela nossa coligação de desajeitados — pais e filhos, crentes anacrónicos.
A Graça nem sempre cheira a incenso. Muitas vezes cheira a gente. E talvez — pelo menos em Lisboa — seja essa a cruz desta luta: os bem-nascidos, mesmo sem brilho ou proveito, a defenderem os que, mal ou bem, ainda não nasceram.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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