Bem sei que vivemos num tempo mono-temático, onde as notícias em torno da pandemia consomem-nos do pequeno almoço à ceia, onde esperamos pelos novos comentários enquadradores do nosso preocupado Presidente, e onde procuramos desconstruir as implicações práticas de cada nova visita do nosso primeiro-ministro aos ecrãs de televisão anunciando que comportamentos teremos nos próximos fins-de-semanas, se podemos ir de A para B, como e quando, ou de que cor se encontra o nosso concelho em determinada semana. Sei também que o nível de asfixia de tesouraria e de fracas perspetivas no futuro de diversos sectores económicos é praticamente transversal a todo o tecido produtivo nacional, dos serviços ao turismo, da cultura às PME ou novos projetos, e que a estratégia passa essencialmente por navegar à bolina, e tentar ir aguentando, aguentando, aguentando, enquanto se assiste à orientalização das nossas sociedades (ou seja, uso de máscaras como se usam regularmente na China ou no Japão), à italianização das nossas cidades, i.e. com o nosso trânsito hoje condicionado por motos e lambretas de distribuição de comida, e das bicicletas da moda, e seus cubos diferenciadores às costas, e à ocidentalização (do Norte) de alguns dos nossos hábitos, hoje bem menos mediterrâneos, como o de sair – invés de entrar – num restaurante às 10 da noite, ter de marcar jantaradas só com 6 pessoas, deixar as improvisações na gaveta, etc…
Todos os setores, bem como as portuguesas e os portugueses, esperam que a bendita vacina seja devidamente administrada, produza os seus efeitos, que a prometida bazuca veja luz em Bruxelas e encontre via verde no seu caminho para a economia real cá do burgo. Sobre ambas, enquanto os números da Covid ainda se mantém no vermelho, bem como os da economia e do impacto no desemprego, as notícias que têm chegado dos telexes são animadoras: já tivemos um badalado V-day (e em toda a Europa em simultâneo) e finalmente conseguiu-se desbloquear a ameaça de veto da Hungria e da Polónia ao Fundo de Recuperação e Resiliência (entretanto reforçado) e também ao novo Orçamento da União. Tomemos isso como pequenas luzes nas nossas ainda montadas árvores de natal, não demasiado brilhantes nem vinculadoras de um futuro próspero e suficientemente sólido, mas como algo a que nos possamos agarrar, e inserir num pipeline que aponta hoje para o final do verão como data de regresso a alguma normalidade.
Significa isto que algum do tecido empresarial e institucional português já vai começar a ter algumas condições para pensar no seu futuro, fora das moratórias, dos lay-offs e outros apoios pontuais prometidos, isto é; procurar pensar 2021 de forma mais capacitada, com o enquadramento devido e previsto, com objetivos mais previsíveis e dentro de um quadro de estabilidade mais previsível do que nos encontramos neste momento. Significa isto também que muito rapidamente muitas empresas poderão começar a olhar para o (novo) conjunto de oportunidades que se lhes serão apresentadas em concreto entre o segundo e terceiro trimestre de ’21, e começarem já a pensar em se capacitarem para concorrerem a estes projetos, em se associarem a outros parceiros (em consórcios) para ganharem dimensão suficiente para se baterem a verbas de maior ambição, e em entenderem que muita da atenção em termos de apoios terá, ou deverá ter, sempre um foco importante na designada Nova Economia de Datos / New Data Economy, Transição Digital, e 4.0 IR (4ª Revolução Industrial).
Tenho defendido sobre este tema, especialmente em ambientes informais, que se há algo que a pandemia nos pode dar, ou ter dado, é espaço de respiração e tempo para pensar, especialmente em setores demasiado expostos à loucura do ritmo frenético em que o País havia mergulhado, e na sua quase unidimensionalidade de aposta no turismo, nos tuk-tuks e conjuntos de serviços associados ao acolhimento das centenas de milhar de visitantes que diariamente aterravam em Portugal, deixando cá os euros e as divisas que sobravam depois de pagas as plataformas e empresas multinacionais de acolhimento (os booking, airbnb, uber, etc).
Naturalmente que exagero, pois temos também sabido diversificar a oferta e o nosso tecido económico, mas, em todo o caso, pode e deve este momento de quebra providenciar tempo às empresas e instituições para pensarem nos seus modelos de negócio, nos seus produtos e posicionamento no mercado, nos seus processos de digitalização e integração na nova economia. Ou seja, em como se devem adaptar ao mundo pós-covid de forma mais capacitadas, mais competitivas, com mais valor acrescentado e estratégias mais consistentes e elaboradas de forma a não dependerem do número de cruzeiros ancorados em Lisboa, ou nas taxas de ocupação das pistas de aterragem do Sá Carneiro ou do Humberto Delgado.
E em minha opinião, tendo também em consideração a tal bazuca que se adivinha, deve passar esta reflexão no futuro por processos digitais, mas não daqueles que nos confinam a zooms caseiros ou reconceptualizem novas modalidades de trabalho (como o teletrabalho ou novas grelhas de ocupação de espaço de escritório e / ou fábricas) – isso é uma outra conversa -, mas antes os que finalmente transportem o tecido institucional e empresarial de pedra e cal para a revolução digital em curso, e em andamento por todo o mundo, e onde Portugal deve pegar de charneira, liderando em alguns setores, começando pelo Estado. É neste sentido que com gosto vejo o Governo português assumir como prioritária para a sua presidência da União, como um dos seus principais pilares, a área da digitalização, que aliás sofreu recentemente avanços importantes em Bruxelas com a aterragem no Parlamento Europeu do MiCA, do Digital Services Act e do Digital Markets Act).
Vemos, assim, que, na narrativa e na liderança política, Portugal tem sabido posicionar-se na linha da frente das iniciativas e dos debates europeus. Falta agora produzir o desejado efeito de cascata para o restante tecido económico – grandes e pequenas empresas e startups, e diversas estruturas institucionais -, e conseguir transformar o período pandémico numa oportunidade de qualificação, capacitação e modernização alargada a diversos sectores nacionais, entendendo a digitalização 4.0 da Nova Economia de Dados num conceito alargado, que navega do paperless aos simplexes e à robótica avançada, R&D e Machine Learning, da AI (Inteligência Artificial) ao Quantum e Cloud Computing e Blockchain, esta como infraestrutura-base de segurança, transparência, imutabilidade e auditability de dados, de preferência em DAO’s (decentralized autonomous organizations / organizações autónomas descentralizadas) capazes de quebrar a política insegura de silos de informação e legacy systems hoje ainda muito vigentes.
Nesta sequência, como já referimos, são naturalmente muito positivas as notícias dos acordos que desbloquearam as verbas europeias que devem aterrar na economia lusitana entre o segundo e terceiro trimestre, o que significa que podem muitas empresas e instituições começar a pensar em projetos que potenciem upgrades importantes que contemplem estas dimensões tecnológicas, de preferência de forma integrada e complementar. É neste sentido importante estar atento e capacitar um conjunto alargado da sociedade e do ecossistema empresarial para o potencial deste leque tecnológico, amplificar a literacia sobre estas temáticas e as capacidades técnicas e empresariais necessária para desenvolver projectos robustos assentes nas tecnologias 4.0 (nacionais e/ou em parcerias internacionais) com evidentes mais valias e impacto sociais, e portadores de manifesto valor acrescentado. Será também interessante, ainda no tema da pandemia, verificar que assistência tecnológica se verificará na logística necessária para a distribuição e rastreio futuro da administração da tão esperada vacina, sendo este aliás um excelente caso de uso para a tecnologia blockchain (pelas suas características de total rastreabilidade, imutabilidade e transparência dos dados). Como aliás será interessante verificar se o prometido – e agora inscrito no Orçamento de Estado – Portal da Transparência procurará colocar os seus dados abertos (open source / data) numa blockchain pública ou semi-pública, pois esta permitiria verificar de forma transparente e pública todos os dados relativos aos processos, aos projectos, às empresas concorrentes e à aplicação dos fundos.
Portanto, o tempo de pensarmos nestes processos de capacitação, de envolvimento com o ecossistema tecnológico nacional (e internacional), de literacia e treino técnico (se se necessitar) é agora, i.e., o que decorre entre o início do ano e a abertura dos concursos. E não devem os nossos empresários, dirigentes institucionais e políticos terem receio de procurarem mais formação e informação sobre o impacto transformador deste conjunto de tecnologias que compõem a revolução digital 4.0, e com elas procurarem desenharem novas estratégias que aumentem e valorizem os seus serviços e produtos, de forma aumentar a qualidade e valor acrescentado dos mesmos, diversifica-los, e naturalmente amplificar a sua competitividade (internacional). Conseguir fazê-lo significaria ter a capacidade de aproveitar a infelicidade dos tempos da pandemia para a tornar numa oportunidade transformativa impactante e significativa, melhorando a qualidade e condições de vida de muitas e muitos. E seria excelente conseguir que conseguíssemos atingir o final da Presidência portuguesa com pelo menos parte deste caminho percorrido.
PS: Por ser este o meu último texto antes de 2021, aproveito também para desejar a quem me leia uma boa entrada no novo ano. Bem sei que será fácil desejar-vos um bom ano, pelas características deste que estamos prestes a concluir, onde vivemos, de facto, tempos extraordinários, de sacrifícios vários, reclusão, layoffs e desemprego. De perda. Muita perda. Devemos conseguir manter a guarda ativa e um conjunto de comportamentos sociais e pessoais que nos permitam passar em segurança esta altura festiva, salvaguardando-nos, e os nossos próximos, de forma a podermos em breve voltar a estar no ambiente relaxado, celebratório de que tanto gostamos, de preferência sem perdermos a traça e as características relaxadas do nosso estilo latino-mediterrâneo que tanto prazer nos dá à vida.