Ler Miguel Esteves Cardoso é voltar a Portugal num segundo. É fechar os olhos e estar em Lisboa, no Algarve, numa esplanada à beira mar, aquelas que ele nunca revela a localização. É conhecer Colares sem nunca lá ter estado. É ver os pássaros e gaivotas a dançar no ar, que ele descreve, como só ele sabe fazer. É ler sobre as questões importantes da vida e a forma ideal de encomendar um peixe, num restaurante. Ambas escritas com o mesmo entusiasmo e paixão. E importância. No mesmo parágrafo, como se estivessem relacionadas. É sentir que fazemos parte de algo muito maior do que nós. É sentir. Ponto.
Leio MEC há anos. Décadas. Cresci a aprender com ele. A aprender a descodificar a importância que as coisas aparentemente sem importância têm. Um jantar no restaurante certo, o vinho que nos marca, o passeio que termina um fim-de-semana. A escutar a brisa do mar e a gritaria que um pôr-do-sol consegue fazer. Ler entre as linhas e às vezes receber as maiores lições de vida, sem termos nenhum sítio onde nos agarrar quando as percebemos.
Não é fácil ler as palavras de MEC. É preciso saber. Viver. É preciso ter passado por algumas coisas na vida para compreender aquilo que ele diz, aquilo que está por detrás de cada palavra e vírgula. As pausas que só fazem sentido se lermos uma segunda vez, as emoções que se perdem num pensamento curto. E tudo com a mais simples das escritas, como se fosse fácil. Como se ele as tivesse escrito no intervalo de outra coisa qualquer, sem o mínimo dos esforços. Que cabrão.
Leio o Miguel sem nunca ter passado uma tarde com ele. Sem nunca ter almoçado com ele ou privado da sua companhia. E a ele devo a escrita – e forma de pensar – que hoje consigo fazer, mesmo que básica e inútil. Sofri ao seu lado com o cancro da Maria, vivi com ele as tardes de verão e primavera. As chuvas de inverno. Descodifiquei cada linha com uma lupa, aprendendo a viver no processo. Percebi aquilo que tem importância, anos antes de ter a maturidade para o fazer. Só porque ele as explicou. Porque ele deu as respostas ao teste, que é esta vida. E mesmo assim, parte daquilo que ele escreveu só compreendi anos depois da leitura. Que cabrão.
Como se agradece isto? Como se chega a alguém desta forma e diz-se obrigado por tudo? Como? Não sei. Sei que conheço a sua escrita melhor que a minha. Sei que podia não ter título ou créditos e saber a meio do segundo parágrafo que estava a ler MEC. São livros e livros relidos, são crónicas sem fim, todos os dias. Há anos. É viver com ele, a partir da sua escrita. Não teremos mais nenhum Camões, mais nenhum Pessoa. Ou Mário de Sá Carneiro. O mundo mudou, há muitos canais e coisas a acontecem que nos distraem destes génios. Mas temos o MEC. Vivemos na mesma época que ele e podemos lê-lo todos os dias, com coisas novas escritas dias antes. Que luxo, que nem damos conta. Que estúpidos que somos que não lhe fazemos estátuas ou damos prémios. Que estúpidos que somos.
Devia haver um glossário, uma antologia, uma biblioteca onde se pudessem ler todas as suas palavras, textos, livros, crónicas, frases. Eu pagaria para ter esse privilégio. Para poder reler uma crónica como “os dias são connosco” (que tenho recortada do jornal Público há anos, guardada numa gaveta) ou o “Amor é fodido”, que me deu tantas gargalhadas.
Obrigado Miguel.