As eleições mais importantes do planeta – quiçá as eleições mais importantes do século XXI – estão prestes a acontecer e desde o Pólo Norte ao Pólo Sul estamos todos vidrados com as diatribes dos candidatos, sem perceber patavina. Que se desenganem os americanos que pensarem que as notícias quotidianas sobre as actividades escatológicas do processo eleitoral se limitam à imprensa nacional (deles). Aqui na Noruega não passa um dia em que uma boa parte da imprensa não dedique espaço vital às eleições americanas, principalmente ao penacho falante. Há uma espécie de fascínio colectivo, uma curiosa mistura de sentimentos – entre o presenciar de um espantoso desastre natural e a descoberta de que o cheiro vem do gato da vizinha que foi atropelado há três dias.
Há mais de 6 meses que somos bombardeados diariamente com afirmações que pensávamos terem ficado esquecidas na parte mais bacoca do século XX, debitadas exclusivamente com o objectivo de ocupar “espaço mediático”. Estudei nos Estados Unidos, país onde fui muito feliz, e por isso o meu nível pessoal de alarme e perplexidade com as afirmações e eventos é talvez um bocadinho acima da média. É que – basicamente – nada parece fazer sentido, pelo menos para além do sentido bombástico equivalente ao que se retira de conseguir dizer o abecedário em arrotos .
Por aqui, quando converso com os meus amigos noruegueses e quando leio a imprensa local, a maior surpresa não é que se tenha chegado a este ponto – há anos que a compressão de orçamentos dos grupos de media obriga a que estes tenham de ir diariamente ao lixo buscar comida e assim criar condições para que gente assim tenha espaço mediático. A maior surpresa é que tenha sido o Partido Republicano, supostamente defensor dos bons e brandos costumes, quem foi buscar como seu representante um homem que personifica tudo o que há de mais errado na nossa sociedade, desde a falta de respeito pelos mais básicos ideais humanistas, até a mitomania e insulto-mania desavergonhada contra a qual tão zelosamente procuramos educar os nossos filhos. Para agravar a perplexidade, na Noruega até os polícias andam desarmados, e se precisam de arma têm de ir à esquadra preencher uma requisição, e o Sistema de Segurança Social que em Portugal está em falência, por aqui está bem e recomenda-se.
Por isso, quando se me foi dada – há quatro semanas – a oportunidade de ir fazer um trabalho a Connecticut, EUA, saltei para o avião e lá fui eu. É que queria tentar perceber melhor, mas de perto.
A primeira surpresa que tive quando cheguei aos States foi que não se ouve falar verdadeiramente das eleições. A vida decorre como se fosse vida, como sempre decorreu, como sempre decorrerá. Acho que vimos filmes a mais – esse vício subiu-nos ao cérebro e agora tudo o que passa pela lente deformante dos media parece seguir um guião repleto de efeitos especiais. A vida está-se nas tintas para filmes. Para ver o Trump, precisei de ligar a televisão e escolher os canais da Fox, que nos outros nem passava. Ninguém me pareceu particularmente interessado em falar do assunto. As piadas que todos trocamos na Europa não chegaram aos States, pelo menos aos States onde estive. É como se estivesse no olho do furacão, em que tudo aparenta estar perigosamente calmo.
Os Estados Unidos estão bem e recomendam-se. É verdade que se nota uma predilecção pelo imediatismo, mas é coisa que bate forte e passa depressa – são raros os americanos que se apercebem de que nós, no outro lado do oceano, ficamos a sentir repetidamente as repercussões do que se passou entre candidatos vários dias após estas já estarem basicamente esquecidas no lugar de origem.
Dos meus dias de escola nos EUA, ficou-me um grupo grande de amigos. O sítio onde estudei determinou um ecletismo raro nas suas origens e percurso de vida. A minha curiosidade levou-me a bater à porta (pela web) de uma das mulheres mais sensíveis e inteligentes do grupo, para lhe perguntar por que razão votava Trump.
Isto foi o que me disse: Votar na Hillary porque é mulher, é como votar em Trump porque se gosta de laranjas. É uma política tradicional, com uma história repleta de zonas cinzentas e uma postura de “too big to fail”. Vou votar Trump porque tudo em que tenho acreditado até agora deixou de valer. Os costumes, a educação, as prioridades, tudo desapareceu ou transformou-se numa caricatura do que devia ser. Temos um problema com armas, mas não deixo que ninguém se chegue ao pé de mim e me diga “dá cá a tua arma” porque não quero viver sem me sentir protegida e não sinto que o sistema me proteja. Compreendo a vossa posição na Europa relativamente às armas, mas os EUA são grandes demais e é tarde demais para pensarmos em voltar atrás. O mesmo se passa em relação à política. Somos demasiado grandes para imaginar que um sistema possa ser bom para todos, e não há dinheiro suficiente para criar – como na Europa – um Serviço Social funcional. O sistema político vigente é um monstro de duas cabeças – os Democratas e os Republicanos – e nenhum político é viável como representante daquilo que presentemente sentimos. Resta-nos votar Trump, porque é o único que garante a destruição total, e sem uma destruição total nunca sairemos deste pântano.
Em suma, segundo ela a coisa não vai lá sem uma revolução e a única forma de garantir essa revolução é Donald Trump. Os conservadores americanos estão assim, feitos perigosos revolucionários. E nós no meio, mas sem poder votar.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal – 85 dias
Nas notícias por aqui – Continua a saga (já vai quase numa semana) da esquiadora de fundo que foi apanhada pela rede do controlo anti-doping – alegadamente sem saber que o creme que tinha usado para uma ferida no lábio continua substâncias proibidas.
Sabia que por cá… Em condições normais, a polícia norueguesa nunca anda armada – em caso de necessidade, têm de se dirigir à esquadra e requisitar a arma, apresentando as razões de força maior para o fazer.
Um número surpreendente: Quantos polícias por habitante, na Noruega, em Portugal e nos EUA.