O email que recebi da Visão para integrar o grupo de cronistas ‘Nós lá Fora’ deixou-me com um problema: o ‘Fora de Portugal’ é fácil, mas o complicado é ‘dentro de quê?’ Se alguém ler estas minhas crónicas, fica o aviso que não sei bem sobre o que irei escrever. Irei escrever sobre vários ‘dentros’. Na maioria das vezes o ‘dentro’ será em Moçambique, sobretudo da cidade de Quelimane, mas outras serão nos outros PALOP, outras vezes na África do Sul, e outras não sei.
Neste momento estou em Bissau, mas sobre a Guiné prometo escrever em breve. Desta vez partilho o que escrevi no Rio de Janeiro no dia em que o Senado votava o Impeachment, no passado 12 de Maio. Peço antecipadamente desculpa ao leitor por não partilhar um texto escrito na hora, fresquinho, mas ao ver esta semana as noticias sobre o inicio dos Jogos Olímpicos voltei a ler o que escrevi no Brasil e sobre o Brasil. Passaram-se dois meses, mas o ambiente que testemunhei não parece ter mudado – o lavajato, o impeachment e um Brasil dividido, continuam.
Aqui ficam as algumas das notas que escrevi nos cafés do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.
Cesto de compras de políticos brasileiros – ‘leve, leve todos’
São Paulo. Impeachment, impeachment, impeachment domina as conversas. E claro, como em todo o mundo, as primeiras análises a que estamos expostos são as dos taxistas. Ontem, dentro de um táxi ouvia na rádio os senadores na sessão do impeachment. O taxista perguntou ‘quer levar Dilma?’ (o D sai brasileiro transformando em Dtchilma’) e sem eu responder lá sentenciou ‘leve-a para bem longe’. Atrevi-me a perguntar se o Temer e o Cunha eram a sua escolha, não demorou a resposta – ‘nem pensar. Leva todos’. Nestes casos, ensinou-me a experiencia que basta alimentar a conversa com uns ‘ah sim?’ ou ‘Como?’ É o suficiente para que o taxista fale e fale. Mas arrisquei e perguntei se ele não estava com os colegas taxistas que estavam a cercar a Prefeitura (Câmara Municipal) em protesto contra a aprovação da UBER (aprovada nesse dia de manha por decreto do Prefeito). O taxista olhou pelo espelho e começou ‘sabe quem é o um dos grandes da UBER? O sobrinho do Prefeito’ e acrescentou ao meu cesto de compras ‘leve o Prefeito junto com a Dilma’. Felizmente a viagem terminou antes que no meu cesto de compras tivesse todos os políticos brasileiros.
‘Espírito de porco’
Estou hospedada numa das zonas da cidade dos apoiantes do impeachment. Hoje a olho nu pode-se ver a cor ideológica, as roupas vermelhas são pro-Dilma e o verde e amarelo, pro-impeachment. Como dizia uma amiga no Facebook, vou vestir vermelho e para ir ao shopping. Vestir vermelho é tomar posição. Neste bairro, os condomínios têm muros altos, com guardas de fato nas portas e com o auricular bem visível para não haver dúvida de que se trata de seguranças. Aqui não há vagabundos. Aqui não há pobre. Só hoje, que é o dia do mercado de fruta na rua, vi as empregadas. Muitas de uniforme. Não sei se essas pensam como os patrões. Mas numa das lojas da rua, na esperança cândida de que a senhora fosse dos ‘outros’, perguntei sobre o dito impeachment’. E lá veio mais um acérrimo sim ao impeachment – ‘esses do PT são espírito de porco’. Não conhecia a expressão, mas imaginei que não era simpática. Em reação à minha cara, ela explicou ‘são os que não fazem nada. Partem tudo. Só querem renda’. Já estava a pensar que não ia encontrar nem um único apoiante da Dilma.
‘Eles nos caçam’
À porta do museu de arte contemporânea de São Paulo poetas e escritores vendem os seus próprios livros. Aproximam-se de livro na mão e dizem ‘dá uma olhada?’ . Desconfiada tinha adiado o encontro com um deles para depois da visita ao museu. Dentro do museu arrependi-me da minha frieza. À saída ia decidida a dar os 10 reais pelo livro. Um outro poeta alto sem cabelo e de olhos frios aproximou-se e bloqueou-me: ´dá uma olhada na página 11 é um poema para ti’. A conversa caminhou para qual a razão pela qual tinham de estar ali de livros na mão. Não há editora, não há dinheiro. Perguntei pelo impeachment e recebi um discurso contra a Dilma e o PT. Quase como o discurso de espírito de porco da empregada do café. Já de livro na mão disse que tinha de ir ter com o outro poeta que me olhava como traído. O poeta de olhos frios disse ‘vai sim, o cara é legal, eu sou a personagem principal do livro dele’. Pensei que era mentira. Mas não, é mesmo. O livro do outro é uma prosa poética de rua, dos seus encontros com quem passa e lá estão nas páginas o poeta magnânimo que se acha melhor que todos e a quem o meu poeta já deu um pontapé e aprendeu a custo, com nódoas negras, que não se bate em homem grande. Desabafei com este poeta que não tinha em três dias encontrado uma alma contra o impeachment. Aí o poeta número dois explicou ‘não podemos, nos caçam’. Explicou como São Paulo centro é PT mas o Estado esse é conservador. ‘Esse aí (e apontou para o poeta de olhos frios) é do sul, eu sou do Norte. Essa gente não gosta de ninguém, nem de nada, nem de fazer amor.’ Parei num café e li os dois livros. Ao contrário do dos olhos frios, os poemas do poeta número dois têm estórias de pessoas reais. Os poemas do outro são sobre amor e sobre ele. Os poemas do poeta dois estão disponíveis sem custo na Biblioteca Virtual Harold Chimp.
Onde está o Brasil dos homens brancos ?
Há umas semanas assisti à sessão no Congresso quando os mais de 500 deputados desfilaram, um a um, e expressarem o seu voto. Homem branco após homem branco. Disseram quase todos que em nome de Deus, da família e alguns dos filhos que ainda não nasceram que votavam pelo impeachment. Pouquíssimas mulheres e negros nada. Mas no metrô (no Brasil é com circunflexo), no ónibus e nas ruas existe um Brasil diferente, um país com homens e mulheres de muitas cores. Onde está o país destes homens brancos? Porque o Brasil que se vê tem muito pouca da brancura do Congresso.
Brasil – um país dividido e assustado
Quando regressar do Brasil vão-me perguntar ‘e então?’ Estar no Brasil neste momento é realmente um privilégio. Ver e ouvir o momento político in loco… Naquelas conversas rápidas e informais, vou dizer que é um país gigante, que qualquer redução cai no perigo de se estar a contar apenas um quadradinho do puzzle. Mas o momento é obviamente de tensão. Nas conversas que tive com académicos, jornalistas, ativistas (e passivos) ficou claro que existe não existe o meio, a esquerda e a direita extremaram-se. Não se gostam. Não se toleram. E a população mostra sinais de fadiga grave com os políticos. A corrupção sempre esteve lá, mas, como disse uma amiga minha brasileira, ‘é como o marido traído. Já era traído há muito tempo. Mas agora não só ele descobriu como todo o vizinho sabe e ele não aguenta’. O povo brasileiro é este marido enganado. O muro construído em Brasília pela polícia para separar os manifestantes contra e a favor do impeachment é uma ótima analogia para o país.