A História é muito mais do que o período em que nela vivemos ou de que recebemos conhecimento direto – e convém termos essa noção, neste tempo de triunfo do efémero, de polarização exacerbada e de certezas tão absolutas que nem sequer admitem o direito ao contraditório. Por isso, quando somos confrontados com grandes mudanças ou verdadeiros virar de página numa narrativa que pensávamos ser “eterna” ou imutável, convém saber observar a realidade sob uma perspetiva histórica mais alargada. É isso que, cada vez mais, precisamos de fazer em relação à ligação transatlântica entre a Europa e os Estados Unidos da América. E assumir, sem rodeios, que esta aliança, embora possa parecer-nos antiga, apenas se formou e consolidou no último terço dos 250 anos de História dos EUA, que se vão celebrar em 2026.
Vamos ao contexto. Os EUA proclamaram a sua independência em 1776, após uma longa guerra contra as potências coloniais europeias – e essa é uma marca identitária que nunca foi apagada. Depois, no século XIX, os líderes de Washington continuaram a olhar para os países europeus como rivais perigosos, alimentando uma distância e uma desconfiança que os motivaram, na viragem para o século XX, a manterem-se afastados das quezílias e dos conflitos no Velho Continente – e, por isso, entraram tarde e a custo na I Guerra Mundial. A situação só se alterou depois da II Guerra Mundial, com os EUA a precisarem de se interessar pela Europa como forma de conter a expansão da União Soviética – mas respeitando, de certo modo, as esferas de influência de cada potência.
De uma maneira ou de outra, foi assim que, ao longo das nossas vidas, nos habituámos a olhar para os EUA e para a Europa como parceiros coesos, unidos por uma aliança indestrutível, como se partilhássemos um mesmo espaço de confluência e até um certo sentido “civilizacional”. E mesmo quando a América ultrapassava os limites da decência, envolvendo-se em guerras injustas ou invasões criminosas, tínhamos sempre uma outra América com a qual podíamos reconciliar-nos e manter viva a proximidade afetiva: a América dos grandes cineastas, dos músicos irrepetíveis, dos escritores que nos mostravam novas visões do mundo, do jornalismo corajoso e livre. E também a América que conseguia, através da sua capacidade de atração de cérebros de todo o planeta, concretizar os sonhos tecnológicos que outros consideravam impossíveis. E, durante décadas e décadas, mesmo quando surgiam divergências entre os EUA e a Europa, continuava sempre a existir uma espécie de chão comum, sustentado em valores, princípios e referências culturais. Esse tempo acabou.
Ao longo destes 11 meses, na segunda passagem pela Casa Branca, Donald Trump aproveitou todos os momentos para exibir a sua antipatia em relação à Europa. E fê-lo, quase sempre, perante a tolerância e a complacência dos líderes europeus, em pânico com a possibilidade de perderem o apoio militar de Washington e, por isso, crentes de que, mais tarde ou mais cedo, tudo regressaria ao normal, como aconteceu ao longo dos últimos 80 anos.
A verdade é que, tanto nas ameaças das tarifas como nas exigências para um cessar-fogo na Ucrânia, o bullying de Trump nunca foi artificial. Foi sempre, decerto, a manifestação vocal e visual de um projeto político que elegeu como inimigos principais os ideais democráticos e de liberdade que ainda existem na Europa.
Essa postura se já era evidente no Projeto 2025, elaborado por alguns dos principais conselheiros de Trump, tornou-se agora absolutamente eloquente com a publicação do documento que define a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA. Agora, já não há dúvidas: mais do que a China ou a Rússia, o inimigo nº 1 dos EUA passou a ser “a decadente” Europa, que os homens de Trump consideram estar em declínio, devido à invasão de imigrantes asiáticos e africanos. Segundo o mesmo documento, só há uma solução para a Europa: a sua “libertação” através dos partidos de extrema-direita, antidemocráticos e populistas – que os EUA estão, a partir de agora, empenhados em apoiar e patrocinar, com toda a força.
É esta a nova realidade, para a qual os países europeus precisam de se preparar. Sem ilusões nem nostalgia sobre o outrora “amigo americano” – nem com a falsa esperança de que seja uma estratégia passageira ou um impulso fugaz de Trump. Este é, isso sim, o sinal de uma mudança acelerada e quase irreversível nas relações entre os EUA e a Europa. E é o momento de a Europa agir ou capitular.