“Poucas matérias são tão relevantes para o desenvolvimento económico, para a coesão e para o aprofundamento da cidadania como o ordenamento do território.” Em novembro de 2013, ao apresentar no Parlamento a Lei de Bases da Política de Solos, do Ordenamento do Território e de Urbanismo, Jorge Moreira da Silva, então ministro do Ambiente no governo de Passos Coelho, soube definir bem a importância do diploma que estava a levar à votação na Assembleia da República. Na sua visão, aquela lei – que demorara quatro anos a preparar, na vigência de dois governos de partidos diferentes e com a auscultação de dezenas de entidades – constituía uma “alteração de paradigma” em relação à forma de encarar o futuro das cidades e dos aglomerados populacionais. Era o tempo de, nas suas palavras, “passar da expansão urbana para a contenção dos perímetros urbanos”. E, nesse sentido, declarou que, a partir desse momento, o “foco do desenvolvimento do território estará na regeneração dos aglomerados urbanos já existentes”.
É verdade que o País, nomeadamente as suas principais cidades, mudou muito na última década. Com o impulso do turismo e das novas tendências globais de mobilidade, os centros históricos deixaram de estar ao abandono, como ainda se assistia em 2013, e o mercado imobiliário disparou para valores incomportáveis para a realidade financeira dos habitantes tradicionais de Lisboa ou do Porto. A falta de habitação a preços acessíveis é hoje um problema gritante para os jovens, não só em Portugal, mas também na esmagadora maioria das principais cidades europeias. Por isso, um pouco por todo o lado, procuram-se soluções e apresentam-se medidas, umas mais drásticas do que outras, para tentar resolver um problema que, quer se queira quer não, está intimamente ligado ao modelo de desenvolvimento económico-social que cada um preconiza.
Há propostas para resolver o problema do lado da oferta e há soluções para o encarar do lado da procura. Em qualquer dos casos, há algo que não deve ser esquecido: qualquer solução que seja encontrada não pode nunca ser vista de um modo isolado, mas antes integrada num plano mais vasto de ordenamento do território. Ou seja, deve obedecer a um plano, com todas as variantes económicas e sociais, e articulado, de preferência, com as comunidades vizinhas. Vale a pena citar, a propósito, mais uma frase de Jorge Moreira da Silva naquele discurso de 2013: “Não podemos viver no paradigma da expansão urbana alimentada pelo crédito fácil e por perspetivas ilusórias da valorização. Isso acabou. É tempo de mudar. Não porque a lei seja velha, mas porque o modelo de desenvolvimento terá de ser novo.”
O Governo de Luís Montenegro não pensa assim. Por isso, decidiu enfrentar a crise da habitação através de uma mudança na lei, que passa a permitir a construção em solos rústicos, mediante autorização das câmaras e assembleias municipais. Ao receber o decreto-lei para promulgação, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que estava perante um “entorse significativo” em matéria de “ordenamento e planeamento do território”, mas não recusou a assinatura. E a lei lá seguiu, para ser publicada em Diário da República, no penúltimo dia de 2024.
Desde então as opiniões dividem-se. Há quem considere que a lei vai gerar mais oferta de habitação e quem riposte que a mesma só criará maior especulação imobiliária, além de poder abrir uma autoestrada para a corrupção. Como sempre, haverá argumentos válidos dos dois lados, que merecem ser analisados e ponderados.
É, no entanto, inaceitável que esta mudança na lei dos solos tenha sido feita quase em segredo, como a não querer dar nas vistas. No País em que se perdem horas a discutir previsões económicas (que todos sabem ser falíveis) ou perceções, não se percebe como uma lei com um impacto profundo no ordenamento territorial pode avançar sem qualquer debate. E também, pelos vistos, sem um mínimo de ponderação, já que se fica com a ideia, até pela própria justificação do Presidente da República, de que foi preciso acelerar para não se perder o dinheiro dos fundos europeus, cujo prazo é limitado.
A verdade é que o ordenamento do território é demasiado importante para ser tratado à pressa ou para ficar à mercê de interesses imediatos. As consequências de qualquer decisão, neste campo, podem perdurar durante décadas, como todos sabemos. Aliás, como se aprende na atividade desportiva, há entorses que se transformam numa instabilidade crónica. E em Portugal, em termos de ordenamento, já temos demasiados locais e atividades a precisarem de fisioterapia – sem remédio à vista.
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