Há um paradoxo difícil de decifrar em Portugal: somos, segundo os números fiáveis do Eurostat, os maiores produtores de bicicletas na União Europeia, com 2,7 milhões de unidades a sair das nossas fábricas, em 2022, mas até mesmo os mais entusiastas amantes das duas rodas ou das ciclovias têm dificuldades em identificar o nome de uma ou duas marcas portuguesas deste setor, apesar de ser uma indústria em grande crescimento entre nós. Ao mesmo tempo, quase como se tivessem saído do nada, dois ciclistas portugueses, desconhecidos para a esmagadora maioria da população, conseguiram aquilo que, nunca em mais de um século de história desportiva, nenhum outro atleta nacional havia alcançado: sagraram-se campeões olímpicos, graças a um trabalho de equipa e, ainda por cima, numa modalidade que não é o atletismo.
Embora estes dois factos possam parecer desligados, eles representam, na verdade, as duas faces de uma mesma moeda: a de que há uma realidade ciclística no nosso país, que vai muito para lá do entusiasmo popular, que sempre rodeia a Volta a Portugal em bicicleta, mas também das inconsequentes discussões, cada vez mais estéreis e exacerbadas, que alimentam as polémicas sobre a construção de ciclovias nas principais cidades.
Mesmo que a maioria de nós não se tenha apercebido, há uma revolução em marcha, há sensivelmente década e meia, no setor das bicicletas em Portugal, quase todo concentrado na Região Centro de Portugal. Quando procuramos aprofundar a informação, rapidamente percebemos as mudanças operadas e que têm, cada vez mais, um impacto significativo a vários níveis: temos uma indústria de fabrico de peças e de componentes de bicicleta, que é líder europeia e uma das maiores exportadoras. Temos um Centro de Alto Rendimento bem apetrechado, em termos técnicos e humanos, que tem sabido, paulatinamente, identificar jovens talentos e, aos poucos, criar autênticos campeões, desde os escalões etários mais baixos até à elite do ciclismo mundial. Agora, finalmente, temos também algo fundamental, nos tempos atuais, para ajudar a mudar mentalidades e fazer crescer as ambições: ídolos desportivos, que se distinguem por ser os melhores do mundo, com o peso de uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos que, a partir de agora, põe os nomes de Iúri Leitão e de Rui Oliveira no patamar restrito só ao alcance, nos últimos 40 anos, dos de Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Nelson Évora e de Pedro Pichardo. E, desta vez, tudo indica que não estamos perante um hiperfenómeno com fraca probabilidade de voltar a ocorrer. Não só do Velódromo Nacional de Sangalhos, no concelho de Anadia, estão a despontar vários campeões europeus nas categorias mais jovens – o que acalenta a esperança de uma seleção maior nos próximos Jogos Olímpicos e, consequentemente, mais possibilidades de conquistar medalhas em pista – como também este verão de ouro do ciclismo português pode, dentro de três semanas, ser brindado com mais um feito notável, inédito em Portugal: se João Almeida confirmar as melhores – e mais otimistas – previsões e vencer a Volta a Espanha, uma das três principais competições de ciclismo de estrada do planeta.
Quando, no rescaldo dos Jogos Olímpicos, se tenta fazer o balanço da participação e se olha para os modelos de desenvolvimento que precisariam de ser adotados, nem sempre temos o hábito de reparar nas particularidades do próprio País, de uma forma abrangente, em que desporto devia ser visto como uma parte integrante da sociedade e não como algo à parte. No entanto, se olharmos para os bons resultados da canoagem, percebemos que um dos segredos passou por ter, entre nós, o melhor fabricante de caiaques ao nível mundial, a empresa Nelo, em Vila do Conde – além de condições naturais ideais para a prática da modalidade. Agora, descobrimos que os bons resultados no ciclismo surgiram em paralelo com uma aposta, económica, na indústria das bicicletas. E em ambos os casos através da mesma estratégia desportiva: a formação de seleções com os melhores, num centro de alto rendimento.
As metas europeias preveem a duplicação do uso de bicicletas até ao final da década. Depois destas proezas no ciclismo, apenas falta que terminem as polémicas com as ciclovias. Isto não só será excelente para o negócio como vai melhorar a qualidade de vida da população – e até, quem sabe, ajudar a criar mais campeões olímpicos.
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