Há sete anos, o Reino Unido foi tomado de assalto pela dúvida: seria necessário, por motivos de igualdade e de tolerância religiosa, esquecer a nomenclatura Antes e Depois de Cristo? O tema suscitou debate, depois de se tornar público que a BBC passaria a usar terminologias mais convenientes e politicamente corretas como Antes e Depois da Era Comum. A possibilidade de revisitação desta banal nomenclatura, usada em tudo o que é manual de História, fez suscitar uma série de opiniões contra e outras tantas a favor. A BBC veio depois dizer que tal não era uma imposição geral, mas que apenas dava essa liberdade aos jornalistas e editores, e que essa era apenas a perspetiva de um dos editores do site.
Exemplos como estes há inúmeros, desde que o politicamente correto na comunicação se transformou numa verdadeira obsessão e, nalguns casos, mesmo numa espécie de nova censura do século XXI – das escolas de Seattle, que passaram a chamar esferas de primavera aos ovos da Páscoa, ao Canadá, que mudou o hino substituindo a palavra “filhos” por “todos nós”. Ainda esta semana, no Diário de Notícias, o título de um artigo sobre “empregadas de limpeza” foi depois substituído (e bem, note-se) na versão online por “empregados de limpeza” (no masculino) para combater os estereótipos de género. Precisamente para evitar problemas e críticas públicas que nas redes podem assumir proporções virais, muitas editoras internacionais estão hoje a contratar “leitores de sensibilidades”, cuja missão é filtrar todos os conteúdos racistas, sexistas, intolerantes e de qualquer forma potencialmente ofensivos, e a procura é cada vez mais elevada.
Na verdade, hoje, na vida pública, abrir a boca para sugerir uma ideia está a tornar-se potencialmente perigoso. Não tanto pela ideia em si, que muitas vezes ninguém se dá ao trabalho de discutir, mas pela escolha das palavras. Um vocábulo em falso e cai o Carmo e a Trindade. Na política então nem se fala: em cada cidadão de sensibilidade ofendida há um potencial voto a menos, e por isso mais vale almofadar e neutralizar todo o discurso para não desagradar a ninguém. É um novo proselitismo.
Por cá, o último campo de batalha do politicamente correto é o nome do que pode vir a ser o “Museu das Descobertas”, nomenclatura que suscitou críticas por parte de uma centena de académicos que vê nesta palavra “um ponto de vista dos povos europeus”, recorrendo “a uma expressão frequentemente utilizada durante o Estado Novo para celebrar o passado histórico, e que convoca, por isso mesmo, um conjunto de sentidos que não são compatíveis com o Portugal democrático”.
Várias alternativas foram depois sugeridas, como “da Expansão”, “da Interculturalidade de Origem Portuguesa”, e por último, numa tentativa de fugir do problema e acabar com confusões porque já não se percebia nada sobre o objeto do museu, “A Viagem” (não que fique mais claro).
De todos os riscos da higienização do politicamente correto, o maior deve mesmo ser o anacronismo. Utilizar conceitos e valores dos dias de hoje, para analisar conceitos e ideias do passado, é tentador mas muito perigoso. A expansão portuguesa foi muito mais do que os seus contornos negros e a forma como foi posteriormente propagandeada, e tem de ser abordada em todo o seu contexto. Faz sentido ostracizar agora as palavras “Descobertas” ou “Descobrimentos”?
Ainda na cultura, por exemplo, há uma corrente do politicamente correto que vai mais longe: defende retirar obras de espaços públicos porque não devem estar em exposição peças de autores criminosos ou que tenham tido condutas intolerantes e condenáveis. E onde isso nos levaria: Caravaggio era um assassino, Picasso um machista e mesmo Woody Allen… bom, tem muito que se lhe diga. E os filmes de Harvey Weinstein, vamos retirá-los todos do mercado?
A História não se muda passando-lhe um toalhete desinfetante por cima, mas o futuro muda-se se debatermos abertamente os erros e não esquecermos o passado. E sem medo das palavras.
(Editorial da VISÃO 1319, de 14 de junho de 2018)