Há uma espécie de doença infantil que, com alguma frequência, ataca as organizações humanitárias e de solidariedade, afetando a sua evolução e prejudicando, naturalmente, a sua imagem: são criadas com um genuíno espírito de missão, mas transformam-se depois, aos poucos e acima de tudo, num modo de vida e de sustento para os seus fundadores. O caso dos supostos abusos financeiros da líder da associação Raríssimas, denunciado por uma bem documentada reportagem da TVI e que provocou, naturalmente, uma onda de indignação no País, é apenas o exemplo mais recente dos sintomas dessa doença. E ilustra, com pormenores picantes de vestidos caros, automóveis de luxo e compras exorbitantes de camarão (!), até onde pode ir o desvario de quem, no espaço de poucos anos, passou de uma vida anónima para o frenesim de se ver entre os mais poderosos e influentes, beneficiando, ainda por cima, de subsídios generosos para desenvolver os seus projetos, além de elogios públicos à atividade desenvolvida.
Apesar do escândalo, não é este o momento certo para examinar a ação ou a utilidade daquela associação, criada para ajudar os portadores de doenças raras, mas que se vangloriava de ser uma organização única no mundo por juntar as dimensões social e científica e que, recentemente, tinha iniciado um processo de mudança de imagem e de internacionalização. Não é este o momento porque, de facto, a sua atividade foi sendo sucessivamente caucionada, ao longo de anos e de governos de cores diferentes, com apoios diretos de vários milhões de euros. E muitas figuras com história e estatuto relevante em vários domínios da vida pública nacional emprestaram também o seu (bom) nome à instituição, ao longo dos anos, avalizando-a perante terceiros. Mas é, isso sim, o momento de questionar por que razão os organismos do Estado não fiscalizam convenientemente o quotidiano destas instituições, optando antes por um distanciamento quase acrítico, vergados que estão aos nobres objetivos que elas perseguem e ao peso institucional dos apoios que conseguem reunir à sua volta.
A verdade é que muitas destas associações de solidariedade social, apesar de não terem fins lucrativos, acabam por se transformar em autênticas empresas, muitas vezes de raiz familiar (dando emprego a maridos, filhos e irmãos…), com lógicas de funcionamento e modelos de negócio (ou da sua expansão) que nada diferem dos das companhias tradicionais. Isso, por si só, não é grave ou condenável. O problema é que não estamos a falar de uma qualquer startup financiada por fundos de capital de risco, mas sim de empresas-associações com uma particularidade diferenciadora: vivem quase exclusivamente do dinheiro do Estado e dos subsídios que este lhes entrega. É por isso incompreensível, uma vez que vivem do dinheiro dos contribuintes, que associações humanitárias e de solidariedade não estejam obrigadas a ter contas e modelos de gestão absolutamente transparentes. Ou seja: contabilidade que qualquer associado ou cidadão possa facilmente questionar ou fiscalizar, em qualquer momento, sem se estar à espera de uma denúncia anónima – o que seria ridiculamente fácil de implementar nos dias de hoje, graças à internet, e como fazem grandes organizações internacionais com uma postura exemplar nesse domínio (curiosamente, após o rebentar do escândalo, o site e a página de Facebook da Raríssimas sofreram, isso sim, um total apagão, lançando mais um manto negro sobre o seu passado).
Sem ser exigida transparência e prestação de contas claras perante a sociedade, já se percebeu que vamos continuar a ser sobressaltados por mais escândalos deste tipo, por mais auditorias ou inspeções que sejam feitas. E há muitas associações e instituições exemplares que não mereciam ser arrastadas para a mesma lama.
(Editorial publicado na VISÃO 1293, de 14 de dezembro de 2017)