É a velha questão do escrutínio das autoridades em democracia: e quem guarda, afinal, o guarda? No caso do Banco de Portugal, o guarda do guarda da banca portuguesa é o Banco Central Europeu. No eurossistema, as entidades de supervisão nacionais foram dotadas de autonomia administrativa, financeira e património próprio por forma a garantir a sua independência, e os seus governadores são, por lei, inamovíveis, a não ser em caso de “falha grave”. Faz sentido que assim seja: os reguladores não podem mudar a bel-prazer dos partidos no governo – é assim que se constrói um sistema de freios e contrapesos. Dava jeito era que as regras fossem um pouco mais específicas: o que é afinal uma falha grave?
Não há, como é evidente, polícias infalíveis. E a pior coisa que se pode fazer é apontar o dedo ao polícia e esquecer o ladrão. É evidente que a complexidade das operações financeiras em causa no caso BES foram enormes, envolviam grupos financeiros com muitas ramificações, offshores e manipulação contabilística sofisticada. Mas também é verdade que a atuação do Banco de Portugal deixou mesmo muito a desejar (para usar um eufemismo). E não é só de agora que isso se sabe. A excelente reportagem da SIC “Assalto ao Castelo” veio acrescentar mais detalhes a uma longa lista de falhas do governador, evidentes desde 2013 em diante. Carlos Costa tem um constrangedor historial de contradições e erros acumulados na resolução do caso BES, com vários documentos que contrariam as suas versões, como aliás a VISÃO deu conta já há um ano num grande trabalho de Sílvia Caneco.
O Banco de Portugal tinha dados para avisar mais cedo os mercados e evitar mais lesados – falhou rotundamente porque permitiu a venda de dívida sem dar conhecimento acerca das dificuldades financeiras das empresas do GES suscetíveis de o levar à falência. Conhecia a manipulação das contas da ES Internacional, sabia dos problemas nos créditos do BES Angola e, sabe-se agora, conhecia desde 2013, através de um relatório do BPI sobre o estado das finanças do GES, que o grupo de Ricardo Salgado estava falido há muito – desde 2011. Apesar de tudo isto, deixou que investidores desprevenidos metessem dinheiro em títulos do grupo, dando mesmo uma espécie de “selo de segurança” como autoridade de supervisão ao ter, desde 2014, exigido uma provisão para cobrir o risco de não pagamento dos reembolsos da dívida das empresas insolventes do grupo e assim supostamente apaziguadas as preocupações dos mercados. Como se não bastasse, ainda permitiu um aumento de capital de 1045 milhões de euros que se esfumou pelos ares em poucos meses.
Foi o Banco de Portugal que travou o reembolso dos lesados depois de ter andado durante meses a passar a mensagem contrária (a de que os que investiram aos balcões do BES em dívida do GES seriam ressarcidos). Deu depois o dito pelo não dito quando, na resolução em agosto, informou que os clientes seriam reembolsados (chegando esta informação a ser incluída na secção de perguntas e respostas do site do Novo Banco, informação que desapareceria do site em janeiro de 2015).
Poderia ter afastado Ricardo Salgado e preferiu meter água na fervura e não o fazer – afinal, como disse Bataglia no interrogatório que a VISÃO divulgou, “não se dizia não ao senhor Salgado”, e é evidente que até mesmo o regulador lidava com ele com paninhos quentes. Se tudo isto não configuram falhas graves, não sei bem o que é que elas podem ser: fugir com maços de dinheiro debaixo do braço?
O Governo esse, está desde a tomada de posse apostado em fritar Carlos Costa em lume brando, dificultando-lhe ao máximo a vida para ver se ele sai de cena. [As recentes notícias sobre a intenção da criação de uma autoridade de cúpula que retira poderes ao Banco de Portugal só vêm confirmar esta evidência.] Marcelo Rebelo de Sousa, sabendo da intransigência do BCE nesta matéria, não alinha nesta estratégia e quer zelar pela independência e estabilidade a todo o custo. Não lhe seria fácil fazer outra coisa. Só não se vê a vantagem de manter em funções um governador tipo Walking Dead: um zombie alheio a tudo e em quem ninguém confia. Quem sai a perder com tudo isto é o sistema financeiro português (e, por tabela, a economia), e não consta que goze de grande saúde nem de boa reputação lá fora.
(Artigo publicado na Edição 1253 da VISÃO, de 9 de março. Texto entre parentesis retos aditado hoje.)