Há livros fáceis de ler, e livros difíceis. Há livros que se colam e não deixam parar de ler, e outros cuja leitura é incómoda, difícil ou demorada. A escrita e a literatura têm tantas possibilidades, que tudo pode ocorrer. Até os mitos podem ter pasto rico na forma como os livros são lidos e como cativam leitores. “A Cabeça de Santo” de Socorro Acioli é um desses casos que merece ser olhado, em primeiro lugar, através da narrativa do mito.
Rezam os anais da memória da vida dos livros e dos seus autores, que Socorro Acioli terá contado, numa entrevista, o seguinte episódio acerca deste seu livro. Relatou um episódio que se deu quando foi a uma prisão participar numa “roda de conversa” sobre o seu livro, um sucesso entre os presidiários que o tinham escolhido como leitura para um programa que existe no Brasil em que, com base nos livros lidos, os presos podem ver uma pequena parte da sua pena reduzida.
Socorro Acioli contou que nesse encontro, um dos jovens presos disse que tentou aderir ao programa, mas não conseguia ler nenhum livro quanto mais os seis que eram exigidos. Tudo mudou quando, no seu desespero por não conseguir avançar em leitura alguma, ouviu um dos seus colegas de cela a rir desalmadamente enquanto lia. Seguiu o exemplo desse outro detido, e leu de um fôlego “A Cabeça de Santo”. Estava conquistado mais um leitor, talvez num dos locais mais inesperados. Não conseguiu parar, entendia tudo o que estava a ler e estava apaixonado pela leitura – soube desta história através da colega Fabiana Rocha, professora no Colégio Português de São Paulo, a quem agradeço penhoradamente.
E este livro é isso mesmo: um texto que nos deixa despertos e incapazes de parar de ler. Numa prosa apelativa e elegante, com um enredo muito bem desenhado, Socorro Acioli leva-nos aos confins de uma religiosidade e de um misticismo popular que retrata de forma esplendorosa a forma de crer e de desejar milagres de muito da nossa sociedade.
Samuel, a jovem personagem principal deste texto, é-nos apresentado através de uma descrição dramática do momento em que se encontra. Com uma postura vincadamente antirreligiosa, ele que fizera toda a vida num grande santuário, vê-se completamente abandonado pelos poucos familiares que tem, numa vila quase abandonada. Mas tudo se modifica quando passa a ser o centro de uma experiência mística que vai mudar toda a região, transformando-o num profeta, num quase homem-santo que domina toda uma população desejosa de soluções.
Repleto de momentos e de situações que nos empurram para o riso, esta não é uma obra cómica, nem leve. Tudo nela respira gente, sociedade, desejos de quem nada tem e que a tudo se converte facilmente, na ânsia da mudança. Essa é a força do fenómeno religioso junto dos mais desfavorecidos, tantas vezes aproveitada por oportunistas que criam assim os seus rebanhos, enchendo os seus bolsos. Também esta dimensão Samuel vive na luta interior que se desenrola à medida que um império de poder se vai criando.
Samuel é a tensão entre a busca de alguma racionalidade e a entrega ao místico, forjado, ou não, que gera poder e riqueza. O caminho de Samuel é claro, mas o texto de Socorro Acioli tem ainda o condão de não tomar partido nesta luta contemporânea entre religioso e não religioso. Não, Acioli deixa o “encantado”, nas palavras de Max Webber, viver no seu texto, não o negando, nem nas palavras do não religioso e racional Samuel.
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