Intriga-me a vida secreta dos objetos. Sapatos em bermas de estradas, casas com janelas betonadas como se fossem olhos fechados à face das estradas nacionais, sofás com as molas de fora abandonados em passeios largos, guarda-chuvas e chaves e moedas castanhas que desaparecem da face da Terra sem deixar rasto, casacos de couro em lojas de roupa usada, livros cujas folhas vão amarelando e ganhando apontamentos de rodapé e sublinhados a lápis, vincos nos cantos superiores das páginas. As histórias, as bolandas, as peripécias várias de coisas largadas à solta, vadiando pelo mundo, atravessando anos e continentes. Chamar “objetos inanimados” é não ter alma e, portanto, não reconhecer alma às casas, às louças, às botas, às coisas. Um dia destes, uma senhora tocou à porta de casa dos meus pais porque o cão lhe tinha aparecido com uma carteira na boca e, dentro dessa carteira, alguns documentos, num desses documentos uma morada, a morada da casa dos meus pais. Essa senhora morava, mora, muito perto da Universidade Católica do Porto, que fica na Rua Diogo Botelho, muito perto da casa dos meus pais, onde eu morava no final dos anos 90 do século passado, estabelecimento de ensino esse que eu frequentei entre 1996 e 2001. Não me lembro de ter perdido por lá uma carteira. Mas uma carteira com vários documentos meus apareceu mais de 20 anos depois entre os dentes de um cão de uma senhora que por lá mora. Carta de condução, cartão internacional de estudante com data de 1998, cartão de seguro de saúde, um cartão em papel da Pensão Luanda em Tomar, onde terei ficado por ocasião de sabe-se lá o quê, mas de que me lembro muito bem, lembro-me do senhor Esteves, bigode simpático, bochechas redondas, um senhor baixinho. Pela data dos documentos, eu terei perdido a carteira em 1999. Ainda se pagava em escudos, o Presidente dos EUA era o Bill Clinton, o século era outro, um século onde ainda existiam reis em Portugal, nesse ano ainda existiam a Jugoslávia, o Fernando Pessa e a Amália Rodrigues, os Jogos sem Fronteiras e a série do Seinfeld tinham acabado há meia dúzia de meses, o Vítor Baía era o guarda-redes da Seleção, eu andava no terceiro ano da faculdade e devo ter deixado a carteira esquecida em algum canto, ou ter-me-á caído do bolso, certo é que essa carteira de couro preto, normal, vazia de qualquer caráter que a destacasse de outra carteira qualquer, parecia destinada ao destino de coisas que desaparecem e logo se evaporam, como que caindo para sempre no misterioso alçapão para onde tendem todos os guarda-chuvas. As coisas desaparecem, por regra, para sempre, até nunca mais. Eu, que faço uso da minha imaginação como ferramenta diária de trabalho para fazer o que faço, não consigo almejar sequer sondar, ainda que de longe, as voltas que a carteira terá dado nestes últimos 22 anos até aparecer, resgatada do nada, na providencial boca dum cão. O couro está gasto, como que se desfaz quando se lhe roça o polegar, mas os documentos parecem ter teimado em contrariar a data de validade que os inutiliza para aquilo que foram inventados e estão em perfeito estado. Mesmo o cartão de papel da Pensão Luanda em Tomar. Parece novo, acabado de imprimir, acabado de validar pela mão do senhor Esteves. Lembro-me com nitidez do senhor Esteves, lembro-me de ele me ter dito que era da Praia do Ribatejo. Ainda será vivo, tão vivo como o cartão onde validou as datas da minha estada a esferográfica azul? Quem é o rapaz de 21 anos sem barba nem óculos naquelas fotografias tipo passe? Sou outro, agora. Os documentos, de tão os mesmos, é que já não servem.
(Opinião publicada na VISÃO 1492 de 7 de outubro)