Uma rima involuntária foi o pretexto. Leite com pão é uma boa refeição e tinha chegado o momento de lhe explicar o que é a RIMA. A sagrada instituição. A mágica alquimia da fonética. O meu ofício. Antes de dormir, começámos o jogo. Inicialmente, era eu quem perguntava e respondia, mas rapidamente começou a ser ele a perguntar para me ouvir responder com entusiasmo. O que é que rima com cão? Mão. Com cabelo? Novelo. Com luz? Truz-truz. Com sapato? Pato, gato e chato. Com bigo? Amigo! Com mar? Dançar, brincar, cantar! Com areia? Baleia. Com almofada? Nada! Com pijama? Xixi cama! A cada resposta uma gargalhada em cascata, daquelas que só os bebés conseguem fazer soar. E claro que depois da descoberta, no auge da excitação com o “brinquedo” novo, tive de lhe contar a história em rima e recapitular um ou outro episódio da Porquinha Pepa como quem improvisa um rap numa sessão de open mic.
Perante este encantamento, as lengalengas já familiares passaram a ter mais piada e tivemos de relembrar as mais recorrentes. Do dlim dlão cabeça de cão ao pico pico maçarico quem te deu tamanho bico, atravessámos o nosso repertório partilhado (já vasto), para regozijo de ambos, apesar da hora tardia. Mas o melhor foram mesmo as gargalhadas. Como se, ao entender o mecanismo da rima, se surpreendesse ainda mais com as possibilidades e da surpresa nascesse a diversão. Emparelhar palavras, criar jogos fonéticos, novos sentidos, trocadilhos é, de facto, muito entusiasmante para quem, como eu, cultiva uma relação lúdica com as palavras. E mais feliz do que ele em plena cascata de riso estava eu, por perceber que partilha do meu encantamento e do mesmo sentido de humor. Ainda por cima em pleno processo de absorção de uma língua inteira. No esplendor máximo da capacidade de aprendizagem. Repetindo cada nova palavra como quem prova para ver a que sabe. Que coisa maravilhosa! A infância, a língua e o seu encontro. Com alguns encontrões, claro. Sobretudo nos verbos irregulares. Mas que engraçadas são as calinadas e as experimentações de quem se expressa sem pudores numa língua nova, numa vida nova, na novidade total. E é muito por isto que seria incapaz de criar um filho noutra língua que não a minha. A língua-mãe é mãe precisamente porque dela nos alimentámos e já nos conhece desde pequeninos. Foi nela que esboçámos as primeiras tentativas de comunicação verbal. Foi ela que nos deu os vocábulos com que expressámos as primeiras necessidades, com que demos sentido ao contexto, com que construímos as primeiras reflexões, bloco por bloco, como num castelinho. Foi a língua-mãe que nos deu as primeiras canções e as primeiras histórias antes de dormir. Só com ela temos esse grau de intimidade. Só nela nos exprimimos totalmente, com todas as nuances, com as inflexões que denunciam outras camadas de intenção e de pensamento. Em tudo o que somos hoje e no que fomos sendo, desde sempre. Todas as outras línguas me deixariam órfã de infância e tolhida da minha ancestralidade. Da minha domesticidade. Seria como criar um filho em casa alheia. Fazendo sempre cerimónia. Sem mostrar as costuras da minha própria criação. Todas as outras línguas seriam insuficientes para a expressão profunda das minhas emoções, para a transmissão do meu imaginário, do meu património cultural e afetivo e do meu sentido de humor. Em qualquer outra língua, fico à superfície. E não se pode criar um filho à superfície. É preciso mergulhar fundo, entregar todo o corpo e todo o fôlego, dispostos ao afogamento. Em qualquer outra língua, perderia o elo com as minhas próprias cascatas de riso, ao ouvir o meu pai dizer palavras ao contrário, a minha mãe repetir a lengalenga do macaco ou a minha irmã trocar as sílabas. Definitivamente, só consigo ser mãe na minha língua–mãe. Até porque, se é no colo dela que me deito quando a coisa está difícil, é também com ela que me rio à gargalhada.