Observo o curso da atualidade como aquelas crianças que estão na aula apenas para reparar em quantas vezes a professora diz “portanto”. Estou com dificuldade em concentrar-me nas questões de fundo, porque o meu cérebro desenvolveu uma espécie de barreira imunitária contra polémicas, casos e casinhos e consequentes surtos de indignação. Não absorvo o conteúdo de notícias e artigos de opinião e só me apetece fazer piadas infantis com a fina camada que não interessa. Reparo nos bigodes e nas sobrancelhas dos senhores que falam na televisão, nos tiques de linguagem e defeitos de articulação, reparo nos erros de concordância e faço piadas fáceis em todas as oportunidades de trocadilho.
Estou no meio da encruzilhada, entre escolher a alienação quase total, evitando noticiários, jornais e Twitter, ou continuar neste limbo de superficialidade em que vou aprofundando à medida que me sinto capaz de aguentar os embates com a realidade. É que viver atualizado e consciente do mundo em que vivemos é para os duros. Como é que se dorme com o Brasil e seus genocídios múltiplos? Como é que se recupera a fé na Humanidade depois de ler os milhares de comentários racistas, misóginos, homofóbicos e classistas a propósito de tudo e de nada nas redes sociais? Como é que se vive com a falta de empatia do chamado europeu-comum em relação aos migrantes, aos refugiados, aos desprotegidos e aos minoritários? Como é que se tem um sono tranquilo com o acentuar das alterações climáticas e com o descarrilamento do nosso modelo de desenvolvimento?
Das duas uma: ou rezando um rosário e meio a Nossa Senhora dos Fármacos, ou ensaiando a normalidade possível no meio do Armagedão, num semiadormecimento-irónico-funcional (que tem sido a minha escolha). Semi porque ainda leio metade, adormecimento porque a metade que não leio suaviza e serve de analgesia aos impactos com a primeira, irónico porque não perco uma oportunidade de fazer humor a partir da desgraça, mesmo que seja só para me enganar, e funcional porque permite continuar o dia a dia, como uma pessoa adulta que vota, paga impostos e faz os seus afazeres.
Agora que penso, haveria outras alternativas, mas seriam todas incompatíveis com a funcionalidadezinha nossa de cada dia: ir gritar para a rua descabelada, fazendo discursos febris e gesticulados, como aqueles senhores que praticam a oratória em cima de um banquinho em Hyde Park, ou (na vertente mais hippie) fugindo para uma montanha, para praticar a frugalidade total, evitando qualquer contacto com o resto do mundo. Pensando bem, a funcionalidadezinha está sobrevalorizada. Precisamos de laivos adolescentes de subversão apaixonada. Precisamos das utopias românticas, pouco ancoradas na realidade, da infância. Para mandar calar os papagaios, os tecnocratas e os broncos, com caretas e nanananananãs. Para recuperar a esperança no futuro e conseguir, assim, pensar em alternativas.
Neste fim-da-história que nos venderam, reina a TINA economicista da folha de Excel. Mal se ensaia uma conversa sobre alternativas ao modelo capitalista, começa o enxovalho e o clamor por adultos na sala. Como se, perante o apocalipse iminente, perante as assimetrias crescentes, perante a atomização e a polarização social, mais este cheirinho a anos 30 no ar, a doxa do crescimento-acima-de-tudo ainda fizesse algum sentido. Vamos prego a fundo em direção ao penhasco e ainda há quem ache que faz diferença estar numa carroça ou num Porsche.
Acreditarão ainda os senhores do mundo, que investem em bunkers e em viagens espaciais, que conseguirão sobreviver muito mais tempo do que os homens comuns? A mortalidade é para todos, já os romanos faziam questão de sussurrar aos ouvidos dos triunfadores. Sendo que diante do caos do tempo que vivemos, apetece pedir mais crianças na sala, não apenas para recuperar a infantilidade das utopias e da empatia, mas para fazer trocadilhos estúpidos e piadas secas enquanto está a dar o noticiário.
(Crónica publicada na VISÃO 1471 de 13 de maio)