A Inteligência Artificial tem merecido pouca atenção numa Europa a braços com a crise das crises – e ainda menos num Portugal de bruços com os casos dos casos. Os avanços no universo dos robôs são, todavia, galopantes como a inflação. Não é preciso ter formação em machine learning para compreender que trarão profundas mudanças à sociedade, à economia, ao mundo. Já em fevereiro deste ano, o primeiro advogado-robô da História defenderá um arguido em tribunal.
É provável que nunca tenha ouvido falar da DoNotPay – aplicação para telemóveis que gera documentos legais. Criada com o intuito de ajudar utilizadores a contestar multas de estacionamento, a app desenvolveu-se e é, entretanto, “casa” do primeiro advogado robô: programa que ajuda os utilizadores a processar pessoas, empresas ou a contornar burocracia. Um robô que domina os meandros do Direito e elabora comunicados credíveis para apresentar à Justiça, dispensando parte do trabalho dos advogados. Disponível nos EUA e no Reino Unido, a aplicação conta com centenas de milhares de utilizadores que já recorreram à Inteligência Artificial para fazer andar um processo de divórcio, litígio bancário ou cobrança de impostos.
Levar o robô para tribunal é o próximo passo. Capaz de ouvir e processar o julgamento através do telemóvel do arguido, em simultâneo, o programa dar-lhe-á instruções via auricular sobre como argumentar contra uma multa de excesso de velocidade. O arguido compromete-se a dizer única e expressamente o que o Dr. Robô lhe disser. Será uma experiência “pirata”, ilegal, e a empresa não diz onde será. Se o arguido não se safar da multa, a DoNotPay compromete-se (muito ironicamente) a pagar. Mas o precedente está aberto: a substituição do advogado por uma app.
O progresso da Inteligência Artificial é tão fascinante quanto assustador. Nos últimos anos, os robôs testemunharam a sua própria e vertiginosa mobilidade social: passaram de lavradores, escavadores e empilhadores a académicos, compositores e advogados. A vasta substituição de empregos humanos por máquinas já não acontece apenas ao nível das profissões menos especializadas, que as pessoas não querem.
Mesmo fazendo por não ser catastrofista, urge reconhecer que não estamos preparados. “Ninguém está preparado para como a Inteligência Artificial transformará a Academia”, escreveu Stephen Marche na The Atlantic. Aparentemente, o professor britânico Mike Sharples deu instruções ao robô ChatGPT para escrever um ensaio académico e o resultado é o de um aluno muito bom. O mesmo em muitas outras áreas.
Há dois anos, um robô escreveu um artigo para o The Guardian. A primeira música pop composta pela Inteligência Artificial ouve-se bem numa viagem de carro. Há robôs a escrever filmes, poemas, a resolver problemas de matemática, a criar imagens extraordinárias e a responder a perguntas muito, muito complexas. O engenheiro Blake Lemoine foi despedido da Google após ter partilhado uma troca de mensagens com um robô em desenvolvimento, visando mostrar que o robô se tornara “consciente”. Qualquer semelhança com o filme “2001: Odisseia no Espaço” é mera coincidência.
O proliferar de serviços prestados por robôs está apenas no início. A quantidade de questões políticas e éticas que daí resultam – logo a começar no emprego e no sistema fiscal – exigirá atenção, reflexão e ação. Antecipando a substituição futura das habilidades humanas por alternativas mais baratas, implacáveis, que não precisam de descanso nem férias, o sistema terá de se reorganizar. Até lá, cabe-nos andar informados. Aos decisores, cabe a vigilância e a regulamentação. Quanto a si, vá experimentando (converse um pouco com o GTP online, por exemplo) e pense sobre o assunto. A substituição e o desaparecimento de profissões são uma constante na História – os leiteiros, as datilógrafas -, mas nunca a esta escala. Que mundo resultará de uma realidade em que a maioria dos empregos desaparece?
Enquanto refletimos sobre a magna questão, apenas para chegar à conclusão de que estamos todos tramados, tiremos ao menos proveito da ameaça em Portugal: coloque-se um robô de capacete amarelo ao comando de todas as obras públicas. Um robô de fato e gravata a atrair investimento. Um meritíssimo robô de toga à frente dos megaprocessos judiciais. Se não temos como escapar aos colossais desafios da tecnologia, lucremos ao menos qualquer coisa. Portugal não pode acabar preso por ter robô e preso por não ter.
Nota: o autor escreve “robô” e não robot. Se não podemos vencer os robôs, nem juntar-nos a eles, façamos ao menos por tratá-los com a maior familiaridade possível.
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