O Brasil virou mais uma “página infeliz da sua História” – e, com ele, o mundo. Parabéns e obrigado, amado Brasil. A derrota de Bolsonaro é a derrota da violência, da mentira, da ignorância, da repressão. Para qualquer democrata, é mote para festa; para qualquer humanista, é mote para um sambinha. Se a queda de um populista autoritário não evapora o rasto do seu mandato, a viragem já justifica um grande carnaval. Lula herda um país profundamente fraturado, a moral de um povo devastada como a floresta da Amazónia. Cabe-nos esperar que o Brasil seja como a sua maior preciosidade, a natureza: regenera-se e ganha sempre.
Chegámos ao fim de um mês intenso. A vitória de Lula é o culminar de uma campanha eleitoral acirrada, tensa, plena de incidentes, fake news e golpes baixos. Em apenas quatro anos, Bolsonaro instaurou um novo ethos na política nacional, espicaçando diariamente a raiva e a ignorância de um povo castigado pela pobreza e revoltado com a corrupção. Promoveu as armas, o conflito, o fanatismo, a intolerância e os resultados estão à vista: centenas de episódios de violência, agressões e até assassínios com motivações políticas ao longo da campanha. Pacificar este país maravilhoso, resgatando-o da submersão num clima irrespirável, será um longo processo e um enorme desafio.
Bolsonaro foi sempre comparado a Trump, por motivos óbvios: é clone do laboratório populista de Trump-Bannon, que nos últimos anos plantou em cada país um embaixador do ódio e da boçalidade. (Portugal não é exceção). A pegada do seu mandato é, portanto, igual ao de Trump nos Estados Unidos da América: um país mais violento, mais polarizado, mais fanático, mais desigual. Um clima de conflito constante e um sentimento de guerra cultural em matérias de costumes. Infelizmente, também pelos EUA percebemos que a derrota eleitoral não basta para varrer o populismo odioso do espaço público.
Bolsonaro deixa um Brasil pior em tudo. No plano económico, um país mais desigual – o maior exportador de carne do mundo, onde 33 milhões de pessoas passam fome. Um Brasil dividido e desconfiado, onde milhões mergulharam em teorias da conspiração. O ex-presidente atacou e lutou para desacreditar as instituições democráticas, a Justiça, a comunicação social. Saudou a ditadura militar brasileira, fazendo apologia de torturadores e assassinos. Subestimou criminosamente a covid-19, negou a vacina, contrariou a Ciência e o povo brasileiro perdeu mais de 600 mil vidas para a pandemia. Devastou a Amazónia – só entre janeiro e maio deste ano, a floresta perdeu o equivalente a 2000 campos de futebol por dia -, rasgando tratados ambientais e dando gás a indústrias criminosas da madeira e máfias do narcotráfico no pulmão do planeta Terra. Naturalizou e perpetuou o machismo troglodita, a homofobia, o racismo, negando séculos de progresso humanista sob a lengalenga da “família tradicional brasileira”. Despejou sal nas feridas de um dos países mais diversos e, por isso mesmo e não só, mais esplendorosos do planeta. Colocou lunáticos e conspiracionistas nos ministérios, nos organismos públicos e trabalhou para promover o obscurantismo, o fanatismo religioso, usando as redes sociais para manipular seguidores e crentes. O rasto de destruição do seu mandato é ímpar na História recente.
A vitória de Lula é, portanto, um voto de confiança no resgate do Brasil. A eleição de Lula da Silva não é de todo pacífica na sociedade brasileira e muitos dos seus votos foram ganhos apesar da sua história e não graças a ela. A vitória à tangente é o retrato de um país atravessado por uma profundíssima fenda. O seu mandato terá de sarar feridas, primando pelo exemplo, mas mais: terá de voltar a unir os brasileiros na trajetória da Ordem e real Progresso. O Brasil, meu Brasil brasileiro, era um dos maiores fenómenos económicos do planeta na viragem do século e um dos países mais felizes – rankings no qual tem caído drasticamente. É um universo de uma riqueza natural, histórica e cultural incalculável, palco de muito do que de melhor se criou na música, na dança, nas artes; um oásis de paisagens paradisíacas onde se escondem algumas das maiores pérolas do globo. O povo brasileiro é conhecido mundialmente pela sua generosidade e alegria, pela sua força e criatividade. Tudo isto tem de ser honrado. Tudo isto tem de ser reposto.
Amado Brasil, é possível que o amargo da história não acabe aqui. Os próximos tempos serão duros, avizinham-se dias de alerta, e é provável que o ódio tente fazer das suas. Ainda assim, este é sem dúvida um dia de festa para a democracia e um rasgo de esperança nas tentativas do breu. Vamos, Brasil! Aqui estaremos, lutando para que a página que hoje se vira não passe de uma “passagem desbotada na memória das vossas novas gerações”. Amanhã vai ser outro dia.
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