Esta semana, o Observatório Nacional da Luta contra a Pobreza e a Pordata confirmaram: Portugal continua a não conseguir travar a miséria. O número de pessoas em risco de pobreza e exclusão aumentou – tendência que o impacto da pandemia, em parte, justifica e a inflação agudiza. Vai piorar. As cadeias de supermercado dão nota de um aumento de furtos de bens alimentares, como o bacalhau ou as garrafas de azeite, e a imagem das latas de atum com alarme antirroubo comoveu o país por valer mais que mil palavras. Em Portugal, a pobreza é assim: silenciosa, envergonhada, escondida e enfiada num bolso roto para dar de comer aos filhos.
Quase metade da população nacional é fustigada pela pobreza. De acordo com o relatório do Observatório da Luta contra a Pobreza, há 4,4 milhões de pessoas pobres no país. Os apoios sociais (como, por exemplo, o Rendimento Social de Inserção) conseguem resgatar uma parte desta franja do limiar, nem de perto toda. Mesmo depois de aplicados os apoios, 1,9 milhões de pessoas continuam pobres. Sensivelmente um quinto da população. Este problema profundo e estrutural agrava-se com as crises, transcendendo-as, no entanto: se o fosso de desigualdade entre ricos e pobres continua a aumentar, não estamos perante um problema de escassez, mas de distribuição. E a distribuição cabe à política.
Ora, as medidas de combate à desigualdade pecam por insuficiência, ano após ano. Mostram-no o resultado de Portugal nos indicadores: subimos 5,8% no quoficiente de Gini e 13% no S80/S20. O fosso entre os vinte por cento mais ricos e os vinte por cento mais pobres continua a aumentar – sem que as medidas de combate à pandemia o tenham travado. Isto explica porque é que, defronte da mesma taxa de inflação, nem todos somos forçados a esconder pacotes de leite no casaco. Ou batatas, ou pão-de-forma. Infelizmente, preparamo-nos para seguir o mesmo caminho no combate à inflação.
Há cada vez mais pessoas incapazes de se alimentar condignamente, dada a perda real de valor nos salários. O salário mínimo (705€), por exemplo, tem hoje como valor real 639€ – o que representa uma perda superior a um salário inteiro ao fim do ano. O adiamento tardio das medidas de combate à inflação, a contenção nos apoios às populações vulneráveis e a atualização exígua das pensões e salários pagar-se-á com mais pobreza. Se a importância da redução do défice e dívida pública é consensual – objetivos para os quais o presente Orçamento do Estado é manifestamente vocacionado -, a pergunta aqui é então: quem paga? Num país de desigualdades crescentes, num contexto em que as grandes fortunas se agigantam, fará sentido imputar o custo aos mais vulneráveis? Às crianças pobres, aos jovens? Aos pais, aos pensionistas? Às classes médias depauperadas? Aos profissionais do setor público, pagos a tostões? De acordo com a Pordata, cerca de 20% das pessoas abaixo do limiar da pobreza são trabalhadores. O que nos diz isto sobre a urgência de rever a política de salários?
O mesmo para a Habitação, plano de uma crise sem precedentes que castiga os cidadãos e as famílias. O mesmo para a Educação, a Saúde, a Cultura, pilares fundamentais de serviço público – dimensões promotoras da mobilidade social, da coesão e da sustentabilidade socioeconómica do país. Portugal terá de aplicar os fundos europeus nestas áreas com estratégia, já na resposta à crise. Contudo, não será suficiente. Cabe ao Governo socialista fazer jus ao socialismo: combater a crise com medidas sociais fortes e políticas sérias de redistribuição. Isto sob pena de não sobrar remendo para o tecido social.
A imagem da verdade inaceitável está em cada alarme colado em bens de primeira necessidade. A pobreza é uma vergonha estritamente coletiva: nunca para quem é pobre, sim para a sociedade que a permite. A miséria em 2022, num país desenvolvido, é sintoma de uma falha coletiva, que só a política poderá corrigir. Até lá, não haverá fome que não dê em silêncio. O silêncio doloroso da pobreza. Um silêncio sempre triste, sempre injusto, sempre insuportável.
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