“Vagina. Vagina. Vagina. Não importa quanta vezes se repete, pois nunca soa como uma palavra que se queira dizer. Soa como o nome de uma infecção, ou de um instrumento médico”. Os Monólogos da Vagina, escrita por Eve Ensler, dramaturga e intérprete norte-americana, foi publicado em 48 idiomas e apresentado nos palcos de mais de 140 países. É uma viagem pelos indecifráveis confins do corpo genital feminino e foi importante, porque expôs o que se pensa e, mais preocupante ainda, o que não se pensa sobre a genitália feminina. É também esse o objectivo deste texto, trazer alguma luz para o que não se pensa sobre o corpo genital feminino.
Ao longo de 25 anos de prática clínica, tenho conversado com centenas de mulheres que têm confiado em mim para partilhar as suas dificuldades e inibições sexuais. Cada uma tem a sua história, uma narrativa de vida única, com vivências sexuais extraordinariamente diversas. Mas têm uma coisa em comum. Todas revelam uma relação pouco positiva com o seu corpo genital. Dizemos que têm uma auto-imagem genital negativa. E isto tem implicações importantes na sua sexualidade.
Muitas mulheres não conhecem a sua vagina, não sabem como é por dentro, nem que textura tem. Para muitas mulheres, a ideia de explorarem e descobrirem como é a sua vagina causa-lhes desconforto, embaraço e para algumas até, dor e ansiedade. Foram socializadas e educadas para não mexer, não tocar, não ver, não sentir. Foram aprendendo a excluir essa parte do seu corpo que ficou desintegrada, desvalorizada, esquecida, fora de cena. Até ao momento em que é preciso entrar em cena e ir além da função reprodutora. E agora? Como vai a mulher ficar amiga dessa dita genitália desconhecida e distante? Como incluir essa parte do corpo na cena do prazer sexual? Não há livro de instruções, não há manual, painel de controlo, nada. Como vai ela ajudar o parceiro a saber os estímulos que gosta e prefere se nem ela própria sabe? Mesmo as mulheres que sobreviveram melhor à socialização sexual repressiva da cultura Judaico-Cristã e conheceram a masturbação sem culpa, mesmo essas podem ter algum apuro.
A tua vulva é muito mais bonita do que tu pensas
Muitas mulheres ainda sentem embaraço e vergonha da sua vulva. Muitas mulheres sentem desconforto e resistência em descobrir a sua vagina com o dedo e um espelho. Não fazem ideia como ela é e que textura tem e nem curiosidade têm. Já agora, sabemos a diferença entre vulva e vagina? Já lá vamos.
Layla Martin, consciente disto, realizou um filme incrível para capturar a lacuna entre a forma como a mulher vê a sua vulva e a forma como o seu parceiro a vê. Trata-se de um contexto heterossexual. Neste vídeo de 3 minutos e meio, intitulado “Your vulva is much more beautiful than you think”, a autora convidou várias mulheres ao seu estúdio, para deixarem fotografar as suas vulvas. Imediatamente depois, a própria mulher visualiza as fotografias num ecrã. Esta visualização provoca emoções. Para algumas a vergonha e o embaraço, outras olham com estranheza, observam rugas, uma mulher jovem chora. Logo de seguida, o ecrã com essa mesma imagem é levado ao companheiro que aguarda noutra sala. A mulher observa a reação do companheiro ao visualizar a mesma imagem. Eles têm reações muito mais positivas à imagem da sua vulva do que elas. Encontram beleza na fotografia, mas elas não viram nada de belo.
Nas sociedades ocidentais, a genitália feminina não tem sido objecto de preocupações estéticas ou valorização erótica, ao contrário do que acontece noutras sociedades e culturas. A cirurgia cosmética genital inclui procedimentos que visam mudar aspectos estéticos da genitália mas que não são medicamente prescritos ou necessários. Algumas dessas mulheres que procuram a cirurgia cosmética genital, são mulheres com uma má relação com a sua genitália ou que têm dificuldades e inibições sexuais que acreditam poder resolver através destes procedimentos, por exemplo, a redução dos pequenos lábios, “rejuvenescimento vaginal”, ou a lipoaspiração púbica. Mas essa ideia pode ser um engano e esta intervenção não resultar na melhoria da auto-estima e auto-imagem pretendida. Nalgumas situações estes procedimentos podem trazer benefícios, por exemplo, fazer uma redução do prepúcio do clítoris, para expor a glande e facilitar a estimulação do clítoris, mas nem sempre é assim.
Ao contrário da genitália masculina, essa sim objecto de valorização nas sociedades falocêntricas, a genitália feminina tem tido associada muitas crenças e conotações negativas. Tabus educacionais e religiosos decretaram que não deve ser tocada, podendo até ter odores desagradáveis e não ser limpa. Mas não é de todo assim. Uma vagina saudável é tão limpa como uma embalagem de iogurte, como diz Sharon Hillier, uma microbiologista internacionalmente reconhecida dedicado à investigação da saúde da mulher, em particular dos microorganismos da vagina.
“A vagina é o seu próprio ecossistema, uma terra desconhecida de simbiose e vigor cáustico. Uma bacia de captação (e não um pântano!): aquosa, estável, porém num fluxo perpétuo”, refere Natalie Angier num magnífico livro traduzido e publicado em Portugal pela Gradiva em 2001 (“Mulher: Uma Geografia Íntima”).
A genitália feminina é complexa e parte dela é escondida
A parte escondida inclui a vagina, os bulbos vestibulares (tecido erétil) e o clítoris, que são estruturas internas. O clítoris, está tão escondido que só foi completamente conhecido em 1988. Só nesta altura se conheceu melhor esta estrutura com dois corpos cavernosos eréteis com 9 cm de comprimento, muito para além da pequena glande visível, externa, com 1 ou 2 cm. Ou seja, conseguimos chegar à lua 29 anos antes de descobrir o clítoris. Como foi o prazer sexual feminino tão negligenciado? Não é incrível?
Mas voltemos à vulva, à vagina e à diferença entre ambas. A vulva é a genitália externa, inclui o monte púbico, clítoris, pequenos e grandes lábios, o vestíbulo e o introito vaginal. A vagina é uma estrutura interna, um canal musculomembranoso que se estende até ao colo do útero, tem entre 7 a 9 cm, com 3 mm de espessura média. As suas paredes são extensíveis e no seu interior é constituída por pregas transversais que se notam na palpação com os dedos. Para saber mais, recomento o livro da Lisa Vicente, médica ginecologista obstetra que publicou em 2019 O Atlas da V.
O impacto da auto-imagem genital negativa na sexualidade da mulher
Esta relação difícil com o corpo genital inibe a descoberta do prazer sexual. A vergonha e o embaraço impedem a exploração dos estímulos sexuais. Tudo isto compromete a vivência da sexualidade que muitas vezes se traduz em inibições sexuais, falta de à vontade, desconhecimento do corpo, dificuldade em fazer o exame ginecológico. O retraimento pode causar tensão no pavimento pélvico e levar à dor sexual. A dor pode surgir com a antecipação da penetração podendo mesmo torna-la impossível.
A jornada do prazer pressupõe o contrário de tudo isto. Liberdade para explorar e descobrir o prazer, a solo ou com um(a) parceiro(a). Porque o corpo é uma festa, como diz Eduardo Galeano.