Contaram-me, há dias, que as mulheres iranianas precisam da autorização do marido para saírem do país. Sabemos que em várias comunidades muçulmanas a posição da mulher é complicada e que isso tem que ver com a interpretação que os juristas fazem dos códigos de conduta morais fundamentando-se em leituras enviesadas do Alcorão. Escusado será dizer que os juristas são todos homens! E homens que querem fazer prevalecer uma interpretação masculina e masculinizada (com tudo o que ser masculino quer dizer em culturas específicas) em sociedades de tipo costumeiro. Choca-me que num país de maioria Xiita, que tem na sua história fundacional os melhores exemplos de mulheres que lutaram pelos seus direitos e pela justiça social, tenha regredido tanto em matéria de direitos humanos, e de paridade de género. Contudo, se sabemos que em inúmeras culturas muçulmanas, as mulheres e o seu papel na vida pública são matéria controversa, temos de ser intelectualmente honestos e perceber que o mundo ocidental, e Portugal, no caso concreto, tem problemas a tratar relativamente às mulheres e à paridade de género.
A posição social das mulheres, e os seus possíveis tipos de ação e intervenção na esfera pública tem sido sobejamente tratada em meios académicos, nos órgãos de comunicação social, e também na política. Existe porém, uma discrepância grande entre aquilo que resulta da investigação académica relativamente a esta matéria e a forma como os media social difundem e enfatizam a papel subalterno e oprimido da condição da mulher muçulmana, para já porque a hegemonização do sujeito ”mulher” pressupõe que exista um tipo de mulher apenas. O que todos sabemos, ser falso. Ninguém, em bom juízo, caracteriza uma coisa chamada “o homem cristão”, ou “o homem ocidental”!
A academia também tem realizado interessantes trabalhos de investigação sobre as singularidades entre as comunidades muçulmanas e em particular, a discutir a questão dos papéis e representações das mulheres, tanto dentro como fora das comunidades religiosas. E o que estes estudos revelam é que em ambos os casos, seja das mulheres em geral, como das muçulmanas em particular, cada país, e consoante o contexto de integração das mesmas, existe pelo menos um traço transversal que é comum a todas: o facto de existirem permanentes desafios e competição desigual, em termos de posição e agência na esfera pública, e a valorização diferenciada entre ambos, sendo que as posições de poder, liderança e rendimentos acabam sempre por subverter a lógica da justiça e paridade de género.
Bem sei que incomodará a alguns que como mulher e muçulmana seja eu a discutir estas questões. Afinal, a forma mais confortável de lidar com os nossos próprios problemas é dizer que tudo vai mal na casa do lado. E vai. Não faço questão alguma de camuflar a desigualdade de género e as assimetrias de poder e opressão que ainda se sofre em muitas sociedades islâmicas. Antes pelo contrário! Considero, portanto, que o assunto é para ser falado, problematizado e, desejavelmente, resolvido.
A antropóloga Margaret Mead, já há muito tempo atrás, teria explicado que o controlo social sobre as mulheres em inúmeras culturas se faz porque “a mulher é a porta pela qual o grupo entra”. O controlo da reprodução humana, social e económica faz-se pelo domínio do corpo da mulher. O que esta tese tem de transversal nas culturas e nos tempos, é que todas as sociedades humanas, sejam elas tradicionais ou modernas, encontram as suas próprias formas de condicionar a posição e ação social da mulher na esfera pública. A necessidade em manter e perpetuar as assimetrias de género resulta de formas de controlo social, que podem variar na forma, de cultura para cultura, mas são equivalentes no seu essencial: ou seja, a prevalência da autoridade e dominâncias masculinas.
Em Portugal, esta matéria tem sido sobejamente estudada e discutida entre antropólogos e psicólogos sociais, e eu própria, seguindo a orientação da Dra. Lígia Amâncio, trabalhei na produção de uma tese de Mestrado onde investigo e discuto os resultados de uma investigação sobre as mulheres muçulmanas portuguesas.
Nem de propósito, como se diz entre nós, enquanto preparava este artigo aqui no Centro de Estudos Internacionais, no ISCTE, cruzei-me com a minha mestre que me facultou um artigo interessantíssimo escrito por uma socióloga na Suíça, onde esta discute a forma como o sexismo europeu é, ele mesmo, uma expressão clara de racismo. Neste artigo[1] que resultou de uma investigação académica, Patricia Roux encontra situações claras que evidenciam que praticas similares entre famílias suíças e famílias muçulmanas são discutidas de formas diferentes consoante se trate de um ou de outro grupo social.
Neste artigo, Patricia Roux refere que em situações onde a mulher é violentada, discriminada, ou menorizada, seja em contextos familiares, judiciais, políticos ou económicos, ou todos estes em conjunto, os europeus negligenciam essas desigualdades, naturalizando a diferença, observando e sendo coniventes com a violência e outros crimes contra a natureza humana, apelando muitas vezes às emoções, psicoses ou outras razões culturais, biologizando, quase sempre, a inferioridade da natureza feminina. Ao passo que, em se tratando de casos exatamente iguais e em contextos onde a cultura dominante dos agentes sociais é o Islão, todos os sexistas saltam em defesa das causas dos direitos humanos, da paridade de género, ou falta dela, insultando toda uma humanidade que pertence a essa mesma cultura de fé religiosa. Roux conclui este estudo explicando que este tipo de manifestações na Europa servem por um lado para dissimular os problemas que os europeus têm com a condição social das suas próprias mulheres, e, por outro, para evidenciar o seu próprio racismo. O racismo é evidenciado pela forma como se “racializa” o problema; i.e. “os muçulmanos é que têm um problema com as mulheres”!
Achei esta tese muito interessante embora tenha sempre defendido que Portugal se demarca do resto dos países europeus pela capacidade inclusivista e pluralista. No entanto, não deixa de ser interessante esta tese para perceber o alcance de algum tipo de racismo emergente, para mim muito assente na ignorância, naqueles que me ofendem a mim, e a todas as muçulmanas portuguesas, quando nos mandam para a Arábia Saudita, ou para ir para a “vossa terra” sempre que defendamos a liberdade de expressão de homens e mulheres que entendem manifestar publicamente os sinais da sua identidade religiosa. Em nome dos “nossos valores europeus”, camuflamos os problemas domésticos, apontando o dedo aos vizinhos da casa do lado. Sorrio sempre quando penso se haverá efetivamente uma “Muçulmânia”?
É óbvio, como sempre o disse, que há ainda um longo caminho a percorrer para a conquista não só da paridade de género, como também no reconhecimento da importância e valor paritário das mulheres tanto nas sociedades europeias como nalguns países cuja jurisprudência se baseia nas interpretações, variadas, da sharia Islâmica. Tal como tenho afirmado em inúmeras circunstâncias, algumas sociedades islâmicas e algumas comunidades muçulmanas, quer na Europa como fora dela, precisam de rever os seus códigos e práticas de paridade de género.
Asituação actual das mulheres iranianas é, no mínimo curiosa, pois o Xiismo sempre se pautou por uma abertura particularmente mais progressista relativamente ao posicionamento e papéis das mulheres na vida pública.
A história do Xiismo está cheia de exemplos e práticas inspiradas em figuras femininas, começando pelas próprias mulheres do Profeta Muhammad, Bibi Kadija e Bibi Aisha, pela filha predileta Fatima, e até pelas filhas e outras descendentes de Ali – o precursor do Xiismo. O ideólogo iraniano Ali Shariati fez questão de lembrar ao povo iraniano, por altura da Revolução de 1979, a importância das mulheres de Karbala, e o papel instrumental das mulheres da família do Profeta na conquista dos seus direitos e na luta contra as injustiças.
Ali Shariati convidou as mulheres iranianas, em 1979, a reivindicar, lutar e conquistar os seus direitos lembrando os exemplos de mulheres heroínas no Xiismo que lutaram pelos seus direitos, dentro de sociedades predominantemente costumeiras e patriarcais, acabando por inclusivamente, influenciar os legisladores para a promulgação de leis em benefício das mulheres.
O capítulo sobre Fatima e Zaynab no livro The Shi’i World – Pathways in tradition and modernity, editado por A. Sajoo, S. Jiwá e F.Daftary, relata episódios fascinantes de figuras femininas Xiitas que em muito se assemelham ao que vi no filme baseado em factos reais, da luta das feministas americanas para conseguir o direito ao voto – As Sufragistas! O que me parece interessante é que estas mulheres xiitas, descendentes de Fatima, lutaram em batalhas, fisicamente também, enfrentando os próprios governadores e líderes espirituais!
Um dos exemplos escolhidos por Shariati para demonstrar a necessidade da mobilização e ação das mulheres iranianas, era Zaynab, irmã do Imam Hussein, o tal que acabou por morrer mártir na guerra de Karbala, ainda hoje lamentado pelos Xiitas, em vários contextos, durante o mês do calendário islâmico – Muharram, e nas cerimónias da Ashura. Shariati recorda:
Quando Zaynab viu que a revolução tinha começado, ela deixou a sua família, o seu marido e seus filhos, e juntou-se à revolução. Não foi em função do seu irmão Hussein, que era o líder desta revolução, que ela se juntou a ela. Ela fê-lo porque reconheceu em si a responsabilidade e o compromisso para com a sua sociedade, para com a sua religião e para com o seu Deus. Quando ela viu que uma luta e uma revolução tinham começado contra um sistema de opressão, ela juntou-se à revolução e esteve ao lado do seu irmão Hussein, em todas as fases desses dias difíceis. Mesmo depois do martírio de Hussein e dos seus companheiros, ela carregou a bandeira da continuação da revolução de Karbala. Ela desempenhou a sua missão a fundo, com perfeição e com justiça. Ela desempenhou a sua missão com força e coragem. Ela expressou por palavras a verdade que Hussein expressou com o seu sangue. Ela lutou contra a tirania em todas as terras. Ela distribuiu as sementes da revolução em todas as terras por onde passou, seja em liberdade ou mesmo como prisioneira. Não é por acaso que os muçulmanos, onde quer que estejam, demonstram uma enorme e profunda simpatia, e amor, relativamente à família do Profeta.
Sim! Todos estes milagres pertencem a uma mulher! Assim, quando uma mulher, que seja consciente e responsável, observa este tipo de atos heroicos vindos de uma mulher da família de Fatima, ela sabe os exemplos que deve seguir, e como ela deve ser. Essa mulher tem a consciência de que uma mulher, seja de que idade ou século for, pode seguir este mesmo exemplo.
Oxalá os desafios para ultrapassar este condicionalismo de menoridade do género feminino não se fiquem apenas pelos feriados nacionais, ou nos debates nos media social em todos os próximos dias 8 de Março. Oxalá retiremos todos, muçulmanos e não muçulmanos, crentes em Deus ou simplesmente na humanidade, o melhor exemplo de grandes nomes do nosso património histórico, para tornarmos este um mundo mais justo e paritário.
[1] Roux, Patricia (2010) Interconnecting Race and Gender relations. Racism, Sexism, and the attribution of Sexism to the Racialized Other