Corria o ano de 1961 quando o Ocidente testemunhava um dos seus mais interessantes mitos contemporâneos. Com o desembarque na Baía dos Porcos, e o correspondente desaire militar por parte das tropas vindas dos EUA, Fidel Castro começava a criar uma aura de resistência ao chamado Imperialismo Norte Americano, consolidado nas dezenas de anos de embargo económico.
Para os regimes ditos comunistas, Fidel era a imagem de uma luta titânica em que um pequeno David resistia a um supostamente avassalador Golias. Para os ocidentais, num clima que ao longos dos anos oitenta e noventa via desenvolver um forte sentimento anti-americano, Fidel Castro era cada vez mais uma figura que ganhava respeito por se ter conseguido manter fora da esfera do Tio Sam, levando bem alto um sentido de coerência e de fidelidade que em pouco foi abalada com o fim da União Soviética.
De facto, as ditaduras têm esta característica única de, para além de poderem corresponder, de facto, a anseios populares e a desígnios ideológicos, juntarem à sua volta as populações pelo carisma do seu líder e por uma espécie de Síndrome de Estocolmo, mas aplicado, não ao raptor, mas a quem retira a liberdade e isola do mundo. Obama percebera que a melhor forma de terminar com o regime de Cuba era dar-lhe a mão, não o hostilizando, ao passo que Trump acaba de mostrar toda a sua inabilidade ao afirmar que manterá o bloqueio…. que apenas fará com que a população de Cuba se una mais à sua liderança, continuando o caminho de isolamento face ao Ocidente.
É neste sentido, no de reunir em si uma imagem de luta contra um imenso poder, neste caso verdadeiramente autista, que é o norte-americano, que Fidel se transformou num símbolo. A “simbolização” de um ditador apenas acontece através da reacção popular a um poder estrangeiro. Assim aconteceu com Fidel como último dos resistentes a um capitalismo que esmagou o comunismo soviético.
E neste campo, os hinos revolucionários em tudo se comparam aos hinos religiosos, e mesmo a imagética de ambos os fenómenos em tudo é semelhante. Por vezes, o líder carismático ganha mesmo formas da natureza messiânica, de um novo tempo, de uma nova escatologia. O “Himno a la Libertad” (1951) de Agustín Díaz Cartaya mostra-nos essa natureza messiânica da revolução:
[…]
limpiando con fuego
que arrase con esta plaga infernal
de gobernantes indeseables
y de tiranos insaciables que a Cuba
han hundido en el mal.
La sangre que en Oriente se derramó
nosotros no hemos de olvidar;
por eso unidos hemos de estar
recordando a aquellos que muertos están.
La muerte es victoria y gloria, que al fin
la historia por siempre recordará
la antorcha que airosa alumbrando va
[…]
A linguagem é plenamente religiosa, catapultando todo o movimento para um desígnio e uma vontade superior onde as imagens voltam a ser as mais comuns na imagética cristã católica.
Aliás, não é apenas fruto de uma abertura de fim de regime, quase um desleixo ideológico, um resvalar em fim de vida, o facto do regime cubano ter recebido o papa Francisco em 2015, assumindo nessa data que o Sumo Pontífice tinha tido um papel essencial na reaproximação entre os EUA de Obama e o regime dos Castro. Posteriormente, foi em Cuba que as Igrejas Católica e Ortodoxa deram um passo fundamental de reaproximação com um simbólico encontro entre Francisco e o patriarca Cirilo de Moscovo – foi como que uma troca em que, agora, Cuba usou a sua influencia na Rússia, o que antes o Vaticano fizera nos EUA.
Mas o pendor relógios vai muito mais longe na integração das formas de piedade católicas. Relembro sempre com um sorriso um presente que há uns anos um aluno e amigo me trouxe da Festa do Avante. Numa banca onde pululavam elementos de enaltecimento do regime cubano e de Fidel, vendiam-se frasquinhos de vidro com areia da praia da Baía dos Porcos!
Com uma frase de Fidel, “…esse día el Imperialismo yanqui sufrió en América su primera gran derrota…”, vendia-se areia dessa mítica praia, transformada em recordação/amuleto tal como se vendem grãos de terra de Fátima e de tantos outros santuários ou da Terra Santa.
Afinal, os discursos estão tão perto!
Iremos ter uma corrida às “relíquias” de Fidel? Só o tempo o dirá. Mas o mais natural é que sim, que tenhamos.