Como tive oportunidade de dizer recentemente numa palestra em Viseu, na minha postura recorrentemente optimista, tenho a tendência de olhar para o mundo através das estruturas mentais ligadas ao diálogo. Na base das culturas do Mediterrâneo depararmo-nos com espaços de encontro, de afirmação e de disputa de ideias. Seja o megaron micénico ou a casa comunitária castreja, seja a sinagoga ou a ecclesia, sempre a ideia de encontro e de assembleia esteve no que de mais essencial afirmou uma identidade ao longo de milénios.
O banquete, eternizado na obra homónima de Platão, é o espaço e o momento onde se reúnem comida e ideias. Mas é mais que isso: é, acima de tudo, a reunião dos indivíduos. Não há banquete, nem sinagoga, nem igreja, sem os elementos que a integram. Ou mais, que a formam.
A marca forte da ideia de comunidade e de refeição comunitária ficou, e onde a melhor encontramos é na matriz primeira do Cristianismo, na centralidade que a comunhão tem no ritual cristão: o partir do pão, e o comer; pegar no cálice, e beber; este acto de comungar, com o que ele tem de “comum” é a marca da ideia de frater, aquilo perante o qual todos são iguais.
No limite, é “o banquete em que todos são iguais”, como afirma o narrador a respeito do olhar e do contentamento de Apolo no final do Canto I da Ilíada, quando todos festejam o regresso da harmonia.
Mas, esta visão, para não se transformar em idílico-simplista, tem de ser matizada com aspectos históricos nada positivos. A ferir de morte qualquer noção de comunhão, temos, por exemplo, as questões de impureza.
Jesus espanta e inova ao tomar refeições com não judeus, com gentios. Era a noção de impureza que os maculava. Ora, nunca mais nos vamos afastar desta visão, desde a forma como historicamente olhamos para o infiel ou o herege, ou a forma como conotámos negativamente a cor «negro» através da sua relação com uma cor de pele, com repercussões conhecidas, que vão desde a escravatura à própria noção de alma, em tempos questionada em relação aos não europeus.
Mas devemos ainda ter mais cuidado: a suposta igualdade expressa nos Textos Sagrados das diversas religiões, ou nas obras fundantes da nossa cultura, é tão válida quanto o é a ideia de Democracia em Atenas: um grupo de aristocratas ociosos a viver economicamente à custa de uma quantidade imensa de escravos que não tinham direito algum, e onde a mulher nem sequer podia ser ouvida em tribunal.
Marcada por um patriarcado arreigado em milhares de anos de um Neolítico degenerado em sociedades militares, com guerras constantes, com uma economia muitas vezes de saque, a segurança levou ao desenvolvimento de uma sociedade maioritariamente assente no género masculino, na definição de uma virilidade onde as virtudes eram guerreiras e os valores os da honra.
As identidades eram fechadas e circunscritas à cidade, ao pequeno grupo. O próprio mundo latino e helenista definia-se por oposição aos outros. Fossem os bárbaros, os não falantes de grego, ou fossem os estrangeiros. A ideia de cidadão crescia na delimitação de direitos que não eram válidos para muitos. Nem para escravos, nem para estrangeiros, nem para mulheres.
E assim ficaríamos agarrados irredutivelmente em identidades até quase aos nossos dias. Ironicamente, especialmente para quem olha o universo religioso como criador de regras, hierarquias, dogmas e funções muito rígidas, foi o cristianismo que lançou na Europa feudal alguns laivos de Fraternidade com o nascimento das Ordens Religiosas, a recriação da ideia de comunidade com votos.
Hoje estamos nesta tensão, nesta ambiguidade entre o acolher, o dar a refeição onde nos afirmamos iguais, ou o fechar a porta, recusando abri-la, recuperando o imaginário do bárbaro, ou mesmo do infiel.
Há dias, meio país tremeu com uma única frase:
“Hoje Bruxelas e o aeroporto belga, amanhã talvez Portugal ou Hungria”
Incapazes de perceber o sentido desta frase dita por um jihadista, somos reféns de um medo que não conseguimos definir, quanto mais controlar.
Seguindo um sentido de leitura em tudo igual ao dos fundamentalistas religiosos, entendemos a referencia a Portugal de forma literalista, sem dar espaço à imagem literária que é usada: Portugal e Hungria como sinónimo do oposto a Bruxelas. Ou, refazendo a frase para se compreender:
“Hoje o centro da Europa, Bruxelas, amanhã talvez uma qualquer periferia, como Portugal ou a Hungria”
Isto é, todos estão em risco, nos centros ou nas periferias. Não quer dizer que não haja esse risco: há-o, mas é igual ao que já havia antes.
A grande questão que se nos coloca hoje, remete-nos directamente para a mais profunda dimensão ética. Quais os limites desta tensão? Onde colocamos o ponto de decisão que nos leva a optar por uma mudança de paradigma, seja ela no sentido de acolher ou de recusar?
Uma tensão como que existencial para uma forma de viver o mundo, de o conceber, uma cosmovisão: abdicaremos de quê, em que medida, com que sentido?
A Liberdade no jogo com a crescente necessidade de um sentimento de segurança é o tabuleiro onde muito hoje se joga.
Ora, o mais ingrato e mais dramático é que é nesse processo de reformulação da nossa cosmovisão que o DAESH joga a sua peça mais potente e eficaz. E não é apenas por um fenómeno de “Instalação do medo” – frase do título de um recente romance de Rui Zink.
Mais que querer alterar a nossa cosmovisão e a nossa mundivivência, o Daesh encontra aí algo de abominável. Numa concepção em que a falha, o pecado, é global e em tudo tocando, um incumprimento, uma blasfémia não é apenas responsabilidade de quem a cometeu, mas é-o do todo colectivo.
Para eles, os ditos jihadistas, um crente tem o dever de agir, de limpar o mundo dessa acção geradora de caos, geradora de potencial vingança de Deus sobre todos – tenhamos a noção de que esta argumentação nada tem de novo, aliás, foi a usada na Idade Média e no Renascimento para se ter iniciado o mesmo processo na Europa cristã com a expulsão de judeus, posterior conversão forçada, instalação do Tribunal do Santo Ofício e desenvolvimento das mecânicas de “limpeza de sangue”.
É neste sentido que o modo de vida Europeu passa ser um problema teológico dos fundamentalistas, sejam eles islâmicos, ou cristãos, como se tem visto nos grupos mais radicais que apoiam o mais mediático dos candidatos republicanos às primárias das presidências nos EUA.
Os atentados não apenas forçaram a mudar a noção de guerra, como se centraram, não unicamente no ceifar de vidas, no criar baixas, mas no criar terror, medo, destruindo o que se julgava adquirido, imutável e avanço civilizacional inquestionável.
O dito jogo faz-se no campo dos valores defendidos pela Europa herdeira do Iluminismo. E faz esse jogo nos limites da possibilidade de conceber futuro dentro do modelo de sociedade instituído.
E aqui, mais que as questões de segurança, regressamos às dimensões de pertença, de identidade, onde o DAESH tem como inconscientes e involuntários aliados os chamados refugiados, os migrantes, os fugitivos de um horror de guerras, muitas delas de plena responsabilidade de nós mesmos.
Se quase diariamente há atentados na Síria e no Iraque, isso em pouco nos preocupou durante vários anos. Apenas quando um dos nossos é degolado ou um atentado tem lugar no coração da Europa é que, egocentrados, decidimos olhar para o problema. Assustados, não é que façamos algo de concreto, mas acordamos, ficamos assustados e regressamos aos medos antigos, ao fechamento, ao olhar para o tal “outro”.
O denominador comum é a ideia, a representação de Islão. Ambos, terroristas e refugiados se unem ao olhar mais incauto do cidadão menos esclarecido através do elo comum, a religião. Todos são muçulmanos. Com as generalizações fundadas no medo, que apenas interessam ao Daesh, tornamo-nos incapazes de equacionar uma integração minimamente pensada e plenificada.
A única certeza que podemos ter é que teremos por muito mais tempo este fluxo de gentes, sejam elas designadas como migrante sou como refugiados. E, realisticamente, nada há que possa efectivamente travar este fluxo – muito menos os tratados com a Turquia.
Obviamente, esta crise de migrantes era mais que esperada. O crescimento demográfico de países pobres, a relativa prosperidade de grande parte da Europa, aliada às representações que os media ajudaram a criar de uma Europa que lhes chega através das séries televisivas, tudo isto levaria, mais crise, menos crise, a uma movimentação de gentes como a que estamos a viver neste momento e que já outras vezes teve lugar com componentes muito semelhantes: nem o Império Romano conseguiu resistir a uma longa agonia com a chegada do que a historiografia passaria a designar, até hoje, como povos bárbaros.
Outra vez, somos obrigados a regressar à questão dos limites, agora centrada na definição daquilo que queremos que seja a sociedade europeia num futuro próximo. As respostas em cima da mesa já as sabemos e vemos os extremos políticos a tomar posições exacerbadas, a derivar para lugares comuns de isolacionismo, uns, de artificial generosidade, outros.
Uma Europa falida de projecto, incapaz de fugir à gestão quotidiana das crises financeiras, negadora da capacidade da utopia, tem nos eventos do terrorismo e dos refugiados uma excelente oportunidade de ter, finalmente, um bode-expiatório para os seus desaires já muito antes pressentidos.