1. Já quase tudo tem sido dito sobre a operação da PSP na Rua do Benformoso (Lisboa), na qual há muito residem ou têm pequenos negócios imigrantes, sobretudo asiáticos. Mas não quero, não posso, deixar de sublinhar aqui que julgo inadmissível numa democracia aquela operação, nos termos e na forma que assumiu – e neste domínio, como na arte, a forma também é conteúdo…
Foi, para mim, “chocante”. Mas não só, não tanto, visualmente, no sentido em que Luís Montenegro usou a palavra, antes sobretudo pelo que foi em si mesma, pelo que encarnou e representa do espírito e da orientação na sua base, de que o visual deu expressiva imagem. Ora, se a PSP pode ter sido responsável pela “forma” da execução, tal espírito e orientação são da óbvia responsabilidade do Governo.
2. O primeiro-ministro afirmou ter ficado “atónito” com as reações condenatórias da operação. Eu fiquei “atónito” (pelo menos admirado, desgostoso) com tal reação de Montenegro. E com as reações de alguns integrantes ou apoiantes do atual Governo, de quem esperava outra atitude, não a acrítica e conivente posição que tomaram.
Sem nenhuma circunstância ou sequer simples suspeita concreta que o impusesse, parar/paralisar, encostar à parede de mãos no ar, revistar, dezenas e dezenas de cidadãos que num dia normal de trabalho estavam ou passavam numa rua, onde nenhum incidente se verificara, é mal e é mau; fazê-lo com tal aparato bélico, com uma numerosa força policial equipada como se fossem combater uma guerrilha urbana, é, repito, inadmissível.
3. Pelo que li da queixa apresentada na provedoria de Justiça, estou de inteiro de acordo com ela. Por óbvias razões penso que esta intervenção policial, no local e nos moldes em que ocorreu, é suscetível de ser interpretada como indiciando: a) possíveis preconceitos racistas ou anti-imigrantes; b) uma intenção política, por parte de quem promove este tipo de intervenção, de conquistar eleitorado do Chega.
Ora, este compreensível e positivo objetivo não é assim que se consegue, pelo contrário. Como já se viu: o Chega considera tratar-se de uma vitória sua (que de certa forma é…) e cavalga-a, avançando sempre no pior sentido. Assim, já depois da ofensiva policial na Rua do Benformoso, anunciou que vai agendar um “debate de urgência” sobre segurança no Parlamento e André Ventura pediu ao Presidente da República uma reunião do Conselho de Estado sobre o mesmo tema!
4. Se isto não bastar para quem não o percebeu antes perceber agora a quem servem e para que servem estas “operações”, estaremos cada vez pior. Até porque se o governo e o PSD as justificam para combater uma efetiva ou alegada “perceção de insegurança” – num país dos mais seguros do mundo… –, também aqui o efeito é exatamente o contrário.
O que me parece muito preocupante pela falta de visão, se não de senso comum, que em meu juízo isso demonstra. De facto, creio ser de meridiana clareza que ver uma rua, na área central de uma grande cidade, ocupada por polícias fortemente armados, e um grande número de cidadãos encostados a uma parede a serem sujeitos ao que se sabe, só pode levar a concluir-se tratar-se de uma cidade insegura, com perigosos gangs e alta criminalidade – não o inverso.
Se há segurança, para quê uma operação destas? Já alguém viu uma “cena” semelhante onde essa segurança existe, como nos países nórdicos? Imagens como as da Rua do Benformoso, ou ainda com mais polícias e armas pesadas, veem-se em operações, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro. Isso quer dizer que as favelas são seguras? As imagens dessas operações transmitem uma ideia ou perceção de segurança?… Não percebo como se pode defender a tese do Governo e adjacentes a este propósito. Defendê-la é ver o filme ao contrário, ver o filme do lado do bandido…
Creio ser praticamente consensual que para combater a insegurança ou (errada) perceção dela, deve ter um papel importante a polícia, mas através, sim, do “policiamento de proximidade”. Que é o avesso do agora feito, porque se caracteriza não por ações estentóreas, ineficazes e que só aumentam o antagonismo entre polícia e comunidades, mas pela aproximação às comunidades e pela colaboração com elas, inclusive no plano social. Visando, além do mais, prevenir os crimes.
À MARGEM
O Presidente e os jornalistas
Uma vez mais o Presidente da República esteve, e falou, na entrega dos prémios do Clube dos Jornalistas, creio que os mais prestigiados do País. E, como sempre, sublinhou a relevância, ou mesmo indispensabilidade, da comunicação social, de uma boa comunicação social, livre e independente, para a democracia.
Ora, estes prémios são também importantes, em especial agora, para mostrar que ainda há bons trabalhos jornalísticos, apesar de os média em geral atravessarem uma crise grave, e de em parte deles haver uma notória falta de qualidade e rigor.
De lamentar é que – reflexo dos males que os afetam? – bastantes média minimizem, até ignorem, esses prémios e o que eles significam. Ao contrário, justamente, de Marcelo Rebelo de Sousa.