Imagine um cenário simples: está num almoço de família e partilha que sente um cansaço extremo, pouca vontade de sair ou viajar. Em segundos, ouve:
– “Isso é depressão ou burnout. Devias ver isso. Tens de procurar ajuda.”
De forma subtil, aquele comentário instala-se. Os olhares mudam. Já não esperam que ria das piadas, nem que ajude nas tomadas de decisão. E, quem só sentia o peso de uma semana intensa e a necessidade de uma pausa começa a perguntar-se se algo está mesmo errado.
Nos encontros seguintes, mesmo depois de dizer “sim, estou bem”, os outros insistem: “Estás mesmo?” – a pergunta é repetida várias vezes, como se a primeira resposta não fosse suficiente. E a dúvida instala-se: e se eu não estiver bem e não dei por isso?
Este é um exemplo daquilo que o psicólogo David Rosenhan demonstrou, de forma brilhante, no estudo On Being Sane in Insane Places (1973). Um grupo de pessoas mentalmente saudáveis foi internado em hospitais psiquiátricos apenas por referir um sintoma vago – ouvir vozes. Nenhuma tinha diagnóstico de doença mental. Mas, uma vez dentro do sistema, qualquer comportamento normal passou a ser interpretado como sintoma. Se riam? Era euforia. Se estavam calados? Era isolamento.
A etiqueta de “doente” moldava toda a perceção.
Quando o rótulo fala mais alto do que a pessoa
Este fenómeno ficou conhecido como Efeito Rosenhan. Mostra como um diagnóstico (ou a suspeita dele) pode condicionar a forma como os outros nos veem e como passamos a ver-nos.
Aqui entra o cérebro: o nosso sistema nervoso é altamente sensível ao contexto e à expectativa e interpreta o comportamento dos outros com base em pistas externas. Quando há um rótulo – depressivo, ansioso, bipolar – ativa-se o chamado viés de confirmação, levando-nos a focar apenas nas evidências que validam essa ideia.
Pior ainda: o próprio cérebro da pessoa rotulada também reage a essa expectativa, tornando a pessoa mais insegura, mais retraída, mais tendenciosa a confirmar, sem intenção, o rótulo que lhe foi imposto..
E no nosso quotidiano?
Este efeito manifesta-se quando:
• Alguém em luto é tratado como se estivesse clinicamente deprimido, sem espaço para viver a dor;
• Um adolescente é visto como “problemático” por expressar emoções intensas;
• Uma mãe que partilha o cansaço é imediatamente aconselhada a “tomar alguma coisa”.
O risco aqui não é só o erro diagnóstico. Eles têm o seu lugar. Servem para orientar intervenções, abrir caminhos terapêuticos e ajustar a resposta ao que cada pessoa precisa. Mas é aí que deviam ficar: no plano clínico. Quando saltam para o olhar social, tornam-se rótulos. Um rótulo, quando cola, fica na pele e não na dor que precisava de ser compreendida
Como contrariar este efeito?
- Ouvir mais. Em vez de rotular o que o outro sente, pergunte: “Queres contar-me mais sobre isso?”
- Ver a pessoa, não o rótulo. Lembre-se que todos passamos por fases difíceis. Um comportamento não define a totalidade de ninguém.
- Desafiar o automático. O cérebro gosta de atalhos, mas vale a pena parar e pensar: “E se isto for apenas um momento e não uma doença?”
Cuidar da saúde mental é essencial. Mas rotular de forma precipitada pode ser tão perigoso quanto ignorar sinais.
Não se trata de negar o sofrimento. Trata-se de escolher as lentes com que o olhamos.
Porque quando vemos com mais humanidade e menos rótulos começamos, de facto, a cuidar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.