Perante as circunstâncias, dificilmente podia ser diferente: fogos de grande intensidade e duração e enorme área ardida. Uma tragédia de valor incalculável.
Julho e agosto foram meses críticos, com picos de calor, baixa humidade e muito vento. Dizem os especialistas que estas condições, outrora raras, tornaram-se frequentes, o que amplifica muito o perigo de incêndio, como a realidade nos mostrou.
A estas condições meteorológicas juntam-se fatores estruturais do território. O espaço rural português tornou-se frágil, resultado de décadas de despovoamento, inação, escolhas erradas e opções de gestão que privilegiaram a homogeneização em detrimento da diversidade.
Onde antes existia um mosaico vivo de campos agrícolas, pastagens, bosques e pessoas, há hoje um deserto de extensas manchas contínuas de matos, pinhais e eucaliptais, combustíveis prontos a arder.
O despovoamento e o envelhecimento das comunidades agravaram a ausência de cuidado, permitindo a acumulação de biomassa e a perda da descontinuidade que travava o avanço das chamas. Casas dispersas, muitas vezes encostadas à vegetação, revelam a desordem da interface urbano-florestal, enquanto a topografia acidentada multiplica a velocidade e a intensidade dos fogos.
Este território, simultaneamente despovoado e inflamável, é o retrato de uma paisagem que deixou de ser habitada e cultivada e passou a ser um risco latente, à espera de um verão quente e seco para se transformar em tragédia.
Neste contexto, o chamado “negócio do fogo” tornou-se um círculo vicioso que alimenta a dependência do combate em detrimento da prevenção. Cada verão mobiliza recursos avultados para helicópteros, aviões e máquinas, mas esse investimento, embora necessário, não resolve as causas estruturais. Pelo contrário, perpetua uma economia centrada na emergência, que beneficia de contratos sazonais e do reforço anual de meios, sem alterar a vulnerabilidade de base do território.
O fogo, assim, deixa de ser apenas um risco ecológico e humano para se tornar também uma necessidade de negócio, o que explica em parte a dificuldade em deslocar fundos para a prevenção estrutural e para a gestão ativa da paisagem.
Romper com esta lógica exige coragem política e visão estratégica. É preciso reorientar o investimento para valorizar o território e não apenas para apagar incêndios. A economia do fogo pode ser transformada numa economia da paisagem: investir em pastorícia extensiva, em cadeias de valor da biomassa, em florestas autóctones e em agricultura regenerativa significa criar emprego local, reduzir riscos e gerar riqueza enraizada.
As soluções não passam por mais meios de combate, mas por transformar o território num espaço vivo e cuidado, com valor. Isso exige recompor o mosaico agro-silvo-pastoril, trazendo de volta a agricultura, a pastorícia e a diversidade florestal que quebram a continuidade do combustível. Exige também diversificar as espécies, reduzindo a dependência do pinheiro e do eucalipto e apostando em folhosas autóctones menos inflamáveis e com maior valor ecológico.
A gestão comunitária e cooperativa das terras abandonadas pode devolver escala e eficácia às intervenções, enquanto a valorização da biomassa como recurso energético ou agrícola transforma um problema em oportunidade. A prevenção inteligente, através de fogo controlado e faixas de gestão de combustível bem planeadas, deve complementar um urbanismo mais resiliente, onde as casas e aldeias sejam concebidas para resistir à passagem do fogo.
Por fim, é essencial educar e corresponsabilizar a sociedade, para que todos compreendam que o risco de incêndio não se resolve apenas com aviões ou bombeiros, mas com um território habitado, cultivado e regenerado. O campo necessita de políticas de valorização que possibilitem a fixação de pessoas.
Se assim não for, só falta arder o que ainda não ardeu, e o que ardeu esperar o tempo suficiente para voltar a arder – totalmente passível de calendarizar e mapear.
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