13/11. Mais uma data negra no calendário das nossas vidas, a juntar ao 11/9, ao 11/3, ao 7/7. Paris, Nova Iorque, Madrid, Londres. A escolha dos dias em que atacam será minuciosamente estudada pelos extremistas islâmicos, que se escudam em fundamentos divinos onde o resto do mundo apenas consegue ver a encarnação do mal.
Em 2004, em Madrid, percebi como uma cidade se pode transfigurar em minutos, e como as ondas de propagação de uma bomba se estendem muito para lá do momento em que explodem. A brutalidade do atentado, o maior realizado na Europa (191 mortos), chocou até aqueles que são treinados para lidar com estas situações. Naquela manhã, junto da estação de Atocha, vi muitos bombeiros e polícias a chorar. Onze anos depois, ainda se acendem velas e se deixam flores nas linhas dos comboios, em memória das vítimas.
Hoje de manhã, em Paris, Fernando Calado, um português ali emigrado há mais de 30 anos e que mora no prédio ao lado do Bataclan, contava-me ao telefone que, depois de uma noite em branco, acompanhando o vai-vem de polícias e ambulâncias, perdeu o pouco ânimo que tinha para sair de casa assim que chegou à porta do seu prédio. Olhou para o chão e, pelas valetas, em vez de água corria sangue.
A grande diferença entre Madrid, Londres ou Paris é, para já, apenas uma: este é o primeiro grande ataque em série (sete ações coordenadas) reivindicado pelo Estado Islâmico do Iraque e do Levante na Europa, conseguindo assim também uma vitória sobre a Al Qaeda, organização com a qual cortaram relações no ano passado. Os princípios que os movem, contudo, em nada diferem. E os resultados das suas ações abalam da mesma forma os fundamentos da vida no Ocidente.
Elementos simpatizantes do Estado Islâmico já haviam assumido a responsabilidade pela chacina no jornal Charlie Hebdo, em janeiro. Ontem voltaram a atacar um país que acolhe uma grande comunidade muçulmana há décadas e que assenta os seus princípios constitucionais nos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Em Paris morreram sobretudo jovens, gente que procurava divertir-se numa sexta-feira à noite, bebendo um copo num bar ou assistindo a um concerto. Em Madrid morreram estudantes e trabalhadores, numa linha suburbana da cidade, às 7 da manhã. Como pode alguém matar sem olhar a quem, em nome de Alá ou de qualquer outro profeta?
Voltamos a fazer as mesmas perguntas, uma e outra vez. Continuamos a ter dificuldade em compreender e esse é um terrível ponto fraco, que em nada nos ajuda a combater o extremismo. Como já ensinava Sun Tzu em A Arte da Guerra, é crucial conhecer o inimigo “como a si mesmo”. Os agentes dos serviços de informações, a quem logo se aponta o dedo pelo “falhanço” em evitar o horror, têm dificuldades enormes em antecipar os movimentos de grupos em constante mutação e que agem, muitas vezes, de forma indiscriminada e sem lógica aparente.
Além disso, a verdade é que as equipas de investigação não cresceram à medida das necessidades e não têm sequer os meios legais para vigiar adequadamente os suspeitos. Basta dizer que em Portugal, depois do 11/9, do 11/3 e do 7/7, foram feitas três revisões Constitucionais mas, em nenhum momento, apesar dos insistentes pedidos, os partidos conseguiram entender-se para permitir a realização de escutas telefónicas ou outra interceção de comunicações (como mensagens de telemóvel) aos serviços de informações. Temos cerca de 50 “espiões” dedicados exclusivamente ao terrorismo mas, só para seguir uma pessoa durante 24 horas são precisos 20…
Existem ainda outras necessidades específicas que não têm respostas adequadas, como a monitorização dos movimentos online destes grupos, que comunicam quase sempre de forma encoberta e cifrada nos submundos da Deep Web, ou a capacidade de traduzir, em tempo útil, a informação recolhida em árabe (e com todas as suas variações, pois o árabe de um egípcio pode ser muito diferente do de um marroquino).
O que irá mudar depois desta nova “declaração de guerra”, nas palavras do presidente francês? O que será ainda necessário para que os governos da Europa decidam investir mais, muito mais, na investigação dos movimentos destes grupos extremistas e se unam verdadeiramente no combate organizado às células que se continuam a multiplicar-se em solo europeu?
Não deveria ser preciso mais sangue para haver mais dinheiro para os serviços de investigação na área do terrorismo. Bastaria olhar para o trabalho que o juiz Baltazar Garzón começou a fazer em Espanha em 1995 (há 20 anos!), dando luta a elementos de grupos islamitas radicados em Espanha. Foi ele que desmantelou a célula da Al-Qaeda que preparou e apoiou logisticamente os atentados de 11 de setembro nos EUA. O chefe deste “comando” era o egípcio Mohamed Atta, que pertencia à célula da Al-Qaeda em Hamburgo, na Alemanha, mas ultimou os detalhes do atentado em Tarragona, em julho de 2001. Atta, que seria o primeiro a esventrar as Torres Gémeas pilotando um avião cheio de gente, fez ainda várias chamadas para Espanha horas antes de se fazer “mártir”.
Seguindo os passos do egípcio, Garzón deteve o líder da célula espanhola, Abu Dahdah, a 13 de novembro de 2001 e, nos meses seguintes, mandou prender mais de 40 elementos da estrutura terrorista. Em setembro de 2003 formulou a acusação contra os responsáveis pela morte de 3000 pessoas em Nova Iorque e em Washington, assinando um mandato de busca internacional em nome de Osama Bin Laden.
A importância da célula espanhola nestes atentados não parece ter impressionado os membros do governo vizinho, que continuaram a não dar grande importância aos avisos dos serviços secretos (nacionais e estrangeiros) e recusavam sistematicamente os pedidos de reforço de meios das autoridades policiais (só em 2003 é que Aznar aprovou um aumento de 25% no número de agentes que se dedicava em exclusividade à investigação da atuação dos islamitas em Espanha).
Em Portugal, a atitude tem sido semelhante, apesar de, na última década, dezenas de indivíduos ligados a grupos terroristas terem usado o nosso país como plataforma logística, comprando aqui passaportes, armas e explosivos que depois foram usados em atentados, como os de Madrid.
Voltando a 2002, surgiram novos “alertas vermelhos” quando um relatório da Interpol apontava Espanha como a principal base e local de refúgio para ativistas radicais islâmicos. A pergunta, nesse documento, já não era se haveria um atentado na Europa, mas sim “quem o fará, quando, como e contra que objetivos”.
Com o início da guerra no Afeganistão, em 2002, e no Iraque, em 2003, milhares de militantes fundamentalistas procuraram refúgio na Europa, “ressuscitando” células adormecidas e criando novos grupos. Os sermões dos imãs subiram de tom, incitando à revolta contra os valores do Ocidente. Várias mesquitas passaram a funcionar como centros de recrutamento e muitos dos jovens seduzidos pela mensagem da jihad passaram a ser cidadãos europeus, membros da segunda ou terceira geração de emigrantes árabes já nascidos em Inglaterra, França ou Espanha.
Em setembro de 20013, quando o juiz Garzón processou formalmente Bin Laden, o então líder da Al Qaeda fez uma ameaça clara contra Espanha (e contra a Grã-Bretanha, Itália, Japão, Austrália e Polónia), pela sua participação na guerra no Iraque: “Reservamo-nos o direito de responder no momento e no local oportunos”.
A resposta chegou naquela manhã de março de 2004, a bordo de quatro comboios. Na altura, escreveu-se que haveria uma Europa antes e depois do 11 de março. Houve mesmo?
O britânico Timothy Garton, diretor do Centro de Estudos Europeus de Oxford, escreveu a propósito: “Em 2001 gritámos ‘todos somos nova-iorquinos’. Mas não éramos. Não tínhamos a mesma sensação de estar em guerra, como eles tinham. E agora? Seremos todos espanhóis?”
Fomos todos madrilenos, fomos todos londrinos, fomos todos Charlie. Mas, na verdade, será que percebemos o que está em causa? E os nossos governos, agiram em conformidade?
Thimoty Garton entende que não. “Sejamos sérios: estivemos todos a dormir pacificamente sobre o assunto desde 2001. E a ameaça do terror islâmico é muito maior para a Europa do que para os Estados Unidos”. Para começar, por questões geográficas. Depois porque as células de extremistas se multiplicaram no seio das enormes comunidades muçulmanas de Londres, Paris ou Berlim, propagando-se como um vírus infecioso, a que é preciso dar luta, de uma vez por todas. A socióloga egípcia Bat Yeor fala, há alguns anos, do poder crescente de um novo mundo chamado Eurábia – situa-se no coração da Europa mas rege-se pelas leis do Islão e tem como líderes radicais fundamentalistas que, nas mesquitas das grandes cidades, espalham mensagens de ódio e de terror.
O que nos deve preocupar, num dia de luto como o de hoje, não são os refugiados que estão a chegar à Europa, eles próprios em fuga do Estado Islâmico. O que precisamos de exigir é que seja dada uma luta sem tréguas aos que se radicalizaram (e entre estes há muitos ocidentais, incluindo portugueses).
Não podemos permitir que nos subjuguem pelo terror. E não podemos continuar a chorar os mortos e depois esquecer o assunto, ou tratá-lo como se não fosse uma prioridade. Todos estes terroristas morrem gritando “Alá é grande”, na certeza de que outros tomarão o seu lugar e que a missão terá continuidade. Gritemos também nós, cidadãos do mundo livre, a uma só voz – exigindo a quem nos representa que nos defenda.