Morreram-me dois ídolos: Zaha Hadid e Keith Emerson. E, de cada vez que tal acontece, sinto o mundo em que vivemos mais injusto. E que os melhores morrem cedo de mais. Mais importante ainda, reforço a convicção que tenho da desmesurada heterogeneidade do ser humano, quer dizer, do abismo de humanidade e de grandeza que distingue uns seres humanos de outros.
Convicção que se reforçou ainda mais no dia em que a Zaha Hadid morreu e vi, na televisão, uma série de notícias sobre trafulhices políticas e económicas – envolvendo bancos que afinal não são bancos e empresas compradas por cleptocratas – e múltiplas imagens com aqueles cortejos de beija-mão de criaturas infra-humanas engravatadas a precipitarem-se para os acontecimentos mundanos para serem vistos por este ou por aquele e para conseguirem um pequeno suplemento de tráfico de influências que compense a sua mediocridade.
E, como que de propósito, vi – no mesmo dia ou no dia seguinte, já não sei – uma entrevista que o Observador fez a uma jovem chamada Matilde (como a minha filha mais nova), que esteve na Grécia como voluntária a ajudar os refugiados (como está, neste momento, o meu filho mais novo). E de tal forma me assolou uma emoção desesperada, que desejei ardentemente que todos esses que me chegam com reticências e antagonismo em relação ao acolhimento dos refugiados tivessem nascido na Síria.
Mas não era de fúria que queria encher esta crónica, mas de uma sentida homenagem a dois artistas imortais. De facto, é esta a única imortalidade em que acredito: a memória que deixamos aos que ficam para depois de nós. O que me leva a reflectir um pouco sobre a eterna luta entre o amor e a morte, chegando à luminosa conclusão de que o primeiro é o melhor instrumento que temos para ganhar a batalha sobre a segunda, pois a memória que deixamos é fruto do amor que temos à humanidade e à Humanidade (conceitos muito diferentes, mas que o novo acordo nos quer obrigar a escrever ambas – acho eu – com minúscula).
O Keith Emerson foi um ídolo de juventude e um músico excepcional. Expoente de uma forma musical que existiu nos anos 70 – e que é habitualmente referida como «prog», diminutivo de «rock progressivo» –, julgo que será mais conhecido pela sua pertença à banda Emerson, Lake & Palmer, embora alguns o possam ainda lembrar pela sua liderança da banda The Nice. Depois editou uns discos a solo com composições suas. Mas isto foi muito mais tarde. Nos The Nice e nos ELP, o brilho durou entre 1967 e 1972. Durante esse período, não só criou música superlativa, como introduziu a primeira grande fusão entre a «prog» e a música erudita. Música erudita clássica (Bach, em várias ocasiões, mas ouça-se o disco «Ars longa vita brevis» dos Nice, e a mistura notável com o 3º concerto brandeburguês) e música erudita contemporânea (Mussorgsky, Bernstein, Bartók ou Janacék). Sem querer ser mauzinho, foi mais ou menos nessa altura (em 1969) que víamos os Beatles publicar «Yellow submarine». Matou-se com um tiro na cabeça porque uma doença fisiológica o impedia de tocar de modo a não desiludir os seus fãs.
Zaha Hadid foi um ídolo recente e já aqui escrevi uma crónica sobre ela há uns meses. É dela o trabalho de arquitectura que considero o mais impressionante do planeta. É de uma beleza indescritível e simboliza de forma perfeita a simbiose entre as ideias que tenho de arte e de modernismo.
Termino assim esta crónica mais emocional celebrando a existência de verdadeiros seres humanos, apesar do que vamos vendo na televisão. Pertencem a esse grupo os artistas, que deram ao mundo – acto de puro amor – a maior obra que o homem jamais construiu. E também lhe pertencem os voluntários «do coração», que vão sofrer, física e emocionalmente, para diminuir o sofrimento de outros humanos, independentemente da origem cultural ou da fé religiosa destes.
São, todos eles, mulheres e homens que se elevam acima de todas as suas barreiras e amarras para dar aos seus semelhantes o máximo de humanidade possível: a arte e o amor. Porque só o amor (e a arte é um acto de amor) vence a morte. E nos torna imortais.
(Para o Manel e o Diogo)