Eu gosto de Bruxelas. Gosto das suas ruas de gente apressada, gosto das minorias étnicas visíveis no centro, perto da Grand-Place, gosto dos bares e cafés, sofisticados e de gente apressada, às vezes até os empregados, como o resto das pessoas, na cidade. Também gosto dos belgas, sejam francófonos sem a mania dos franceses, sejam flamengos sem a rudeza dos holandeses. E até gosto da forma inteligente como este povo de duas nações é capaz de viver meses sem um governo mas governando-se, mostrando de uma forma original que é possível organizar a vida do dia-a-dia sem um executivo político no ativo.
A Bélgica foi agora a vítima de um bárbaro atentado. Aconteceu quatro dias depois de ter prendido um dos mentores dos ataques em Paris, que se acoitou na Bélgica e à Bélgica regressou. Não foi o primeiro alvo nem será o último, desta guerra inconvencional e longa que opõe as democracias ocidentais, com os seus defeitos, ao fanatismo muçulmano, arquetípico e ideal.
Quando barafustamos com a nossa vidinha do dia-a-dia, na verdade confrontamo-nos, sem disso termos imediata consciência, com a imperfeição de um governo de homens e mulheres feito para homens e mulheres. Foi esse o destino que decidimos viver, uns mais depressa do que outros, desde o século XVIII. Está longe da perfeição dos manuais de ciência política ou dos livros santos mas conforta-nos saber que está imbuído de um humanismo que escapa aos que acreditam num governo de Deus, intermediado por homens “santos”, para os homens (as mulheres não contam nesta equação, que as considera sub-humanas). Por esse modo de vida muitos, tantos, deram a vida ao longo dos últimos dois séculos; muitos, tantos, atravessaram oceanos e continentes para encontrar uma terra da qual não fossem banidos apenas por serem quem são.
Ao atacarem os transportes públicos, como antes em Londres e Madrid, ou os locais de diversão noturna, como na noite de 13 de novembro em Paris, os terroristas mostram que todos somos alvos. A guerra é com o cidadão comum, não com os seus líderes políticos ou com os exércitos convencionais. Faz sentido, porque é dessa vulgaridade do dia-a-dia ocidental, em que as mulheres não têm de se cobrir até aos pés nem os homens usarem barbas copiosas, que os fanáticos do Daesh são inimigos. Na verdade odeiam a individualidade, a liberdade, a capacidade de cada um decidir por si e para si.
Esta é uma guerra que escapa às lógicas territoriais ou ideológicas que dominaram o século XX. É uma guerra total, que toca a todos, porque o inimigo do fanatismo são todos os que pensam pela sua própria cabeça. É por isso que em países muçulmanos clericais se punem poetas, se mutilam manifestantes, se apedrejam mulheres, se fuzilam homossexuais: porque eles fogem à norma. Como nas democracias laicas a falta de norma é a regra, por cá somos todos alvos do fanatismo. Eles tornaram-nos nos seus inimigos e estão em guerra connosco. E nós? Já percebemos que é a nossa civilização, laica, democrática, livre, que está em jogo?