Não era suposto escrever este domingo sobre Angola. Mas acontece que esta crónica começa precisamente no momento em que se abrem as portas de uma carruagem de Metro e entra um grupo de quatro homens ainda jovens. Três deles mulatos, o quarto de tez clara e um sotaque rolado a denunciar-lhes as raízes. T-shirts garridas espreitam por baixo das camisas largas e desabotoadas. Um usa boné com a pala virada para trás. Não consigo perceber se serão bolseiros ou imigrantes de segunda geração. Mas são angolanos, tenho a certeza, quando os ouço dizer “a nossa Banda”. Talvez tenham dupla nacionalidade.
Ouço a conversa deles gravitar em torno do rapper Ikonoklasta, mas não falam de música. Ikonoklasta, em cujo passaporte, emitido pela República Portuguesa, figura o nome de Henrique Luaty Beirão, é juntamente com os outros companheiros preso de consciência em Angola. A greve de fome que fez durante 36 dias converteu-o num ícone, num símbolo de resistência e num exemplo para jovens sedentos de mudança no seu país, como os que me acompanham na viagem subterrânea. Luaty está preso mas não silenciado. A sua palavra anda «à solta», como ele próprio declama no tema Fortificando a Desobediência.
– Dizem que Angola ’tá boa, mas é mentira. Se não és filho ou família de alguém, ’tás lixado – expõe o do boné.
– O que me chateia, mano – responde o de tez clara, no seu sotaque afro-português – é o país estar em paz há treze anos e o povo continuar escravizado e a sofrer.
– Cá, os grandes também roubam, mas sabem dar e construir. O povo nem percebe que está a ser roubado – presume o terceiro.
Quando, algumas paragens mais adiante, as portas voltam a abrir-se e eles saem, a conversa já percorreu um trajeto que passou pelas privações materiais e a miséria atroz da maioria da população angolana; pela incapacidade do regime de José Eduardo dos Santos fazer com que o maná do petróleo e dos diamantes chegue à saúde, educação e habitação do angolano comum; pela prisão dos não-alinhados com o sistema e as acusações ridículas que lhes são feitas.
– O “Zédu” e o MPLA ‘tão mal vistos na “Banda” e cá fora. E vão perder o poder – vaticina o quarto.
«És capaz de ter razão», dou comigo a pensar ao vê-los sair. Tinha acabado de escrever um artigo sobre a crise do petróleo em Angola, que pode ter consequências dramáticas. Angola vai sofrer ainda durante pelo menos mais dois anos, segundo as perspetivas do FMI. E os problemas só irão agravar a tensão social e a contestação à cleptocracia angolana.
Não era suposto esta crónica ser sobre Angola. E, na verdade, não é. É sobre tirania, hipocrisia e a cumplicidade dos que têm fechado os olhos aos maiores atropelos à liberdade e à mais elementar justiça que transformam Angola numa caricatura de Estado de Direito. São os mesmos que, em nome dos negócios, branquearam a reputação internacional de uma das mais longas e cruéis ditaduras africanas, ao integrá-la na comunidade lusófona. Falo da Guiné Equatorial, país sem qualquer vínculo a Portugal a não ser alguns navegadores que lá acostaram no século XV e XVI a caminho da Índia.
Falo de reputados democratas cujo silêncio sela pactos com tiranos em prol de negócios de petrodólares. Dos que pedem desculpa por Portugal ser um Estado de Direito Democrático e, ainda assim, são acusados de colonialismo e ingerência nos assuntos internos angolanos em rabiosos editoriais do Jornal de Angola.
Rui Machete e Cavaco Silva não têm o número de telefone de José Eduardo dos Santos para lhe ligarem exigindo a libertação dos 15 presos políticos ali detidos – ilegalmente, mesmo para os padrões da farsa de Estado de Direito que é o regime de Luanda?
Cavaco Silva terá o número de telefone do presidente angolano. Pelo menos tinha-o no verão de 2010, quando o usou informalmente por duas vezes e ligou a José Eduardo dos Santos a pedir a libertação de Pedro Morais Leitão. O gestor português fora preso em Luanda por «motivos económicos», na sequência de uma denúncia feita pelo seu antigo sócio, o ex-brigadeiro do MPLA João Belchior. Segundo noticiou a imprensa na altura, Cavaco terá ainda intercedido em contactos pessoais (igualmente informais) mais duas vezes a favor do filho de João António Morais Leitão, que fora seu colega no Governo de Sá Carneiro.
Deixo que as portas se fechem e arrependo-me de não ter corrigido o rapaz do boné com a pala virada para trás. Devia ter-lhe dito: «Estás enganado. Não é só “na banda”… Também cá te safas melhor se fores filho de alguém.»
Que se saiba, no caso do rapper não só ninguém agarrou no telefone e ligou para o Futungo de Belas, como quem deveria ter agido se escudou no desejo corajoso do cidadão Henrique Luaty Beirão que pediu para ser julgado «como angolano», recusando um tratamento diferente do dos seus companheiros de destino. Ele declarou somente isso. Não abdicou da nacionalidade portuguesa. Logo, os deveres da República para com ele não cessaram. O facto de ter dupla nacionalidade não lhe diminui os direitos nem os deveres do Estado português cessam para com ele. Portugal deu mais um passo no sentido do enfraquecimento da democracia.
A defesa de um português, preso por um delito de opinião, não se justifica apenas por razões humanitárias, de direito, filosóficas ou políticas. Há razões de Estado. Se a República não zela pelos direitos, liberdades e garantias dos seus cidadãos, quem o fará?
Nota: o título foi inspirado nos versos de Ikonoklasta.