Acordei cedo, como acontece desde que abandonei o costume de ser nova. Estranhei o silêncio. Passei pelos quartos dos netos como se desse a volta ao mundo. E fui recolhendo, aqui e ali, as explicações da ausência deles. Mário, o neto mais novo, deixou um bilhete: “Volto tarde, avó. Vou à manifestação contra a invasão da Ucrânia.” Júlia, a única neta, deixou uma mensagem no telefone: “Não se preocupe, avó, estou numa vigília contra a violência na Palestina.” Fernando, o mais velho, deixou um bilhete na cozinha a dizer que ia passar o dia e a noite numa jornada a favor dos deslocados de guerra de Cabo Delgado.
Todos tinham grandes razões para não regressarem a casa. E pensei: “Como deve ser bom ter uma razão para não voltar.” Sentei-me na sala e fiquei a ouvir as vozes das crianças brincando no passeio. Foi então que tomei a decisão. Vesti uma blusa e escolhi uma saia mais decente. Bati a porta de casa, atravessei a rua e fui pedir ao meu vizinho, Edmundo Sanga, que redigisse uma carta ao Presidente Vladimir Putin. O vizinho sabe falar e escrever russo. Aprendeu quando, há meio século, estudou na falecida União Soviética, que Deus a tenha lá no cemitério das nações, onde enterram hinos e bandeiras.