A vida chega-me às vezes pelo telefone, de quando em quando com uma crueldade imensa. A última maldade que me fizeram foi na semana passada quando me ligaram da agência para dizer que o Claudio tinha morrido de repente. Estava a escrever e durante um bom bocado continuei diante do papel, ainda com a esferográfica na mão. Tínhamos estado juntos há pouco tempo, em D.F. Encontrámo-nos mais vezes fora da Península do que em Barcelona ou Lisboa, colecionámos viagens pela Argentina, a Colombia, o Chile, o México, a Alemanha, o raio que o parta, estou a dizer alguns nomes ao acaso, o Claudio era meu editor e eu autor dele há que anos, claro que havia os livros por trás mas houve tempo para muita coisa e a nossa amizade foi crescendo. O Claudio grande, de cabelo grisalho desde muito cedo, um bocado parecido com uma personagem do Quino da Mafaldinha, com um sorriso de menino. Eu era como sou ou no que me fui transformando. Tinha óculos, uma voz muito grossa, e um sorriso de garoto que acabava de pregar uma partida, ou seja entre o divertido e o vagamente culpado. Depois de, muito novo ainda, ter trabalhado em Paris com Christian Bourgois, desde sempre o meu editor francês, conhecemo-nos quando ele já dirigia o grupo Random House que há tantos anos me publica e agora, como quase tudo neste mundo, pertence à Penguin. A primeira coisa nele de que gostei foi a sua voz de cantor de blues, sempre de cigarro, que mais tarde deixou, a engrossá-la. A segunda foi o seu sorriso de catraio, que lhe amaciava os ângulos da alma. Era um homem complexo, não muito fácil mas eu também não sou, e em tantos anos nunca existiu um desacordo entre nós. Ele foi
(que tempo de verbo horrível, foi)
duro, eu pagava-lhe na mesma moeda e sempre nos demos muito bem. Profissionalmente não me recordo de discordarmos, aceitando a dureza um do outro. Trabalho à parte a nossa relação era óptima. Por exemplo uma ocasião estávamos em Buenos Aires, eu num palácio com chofer e tudo e três bençãos papais três à cabeceira da cama, o que me encheu de intenções puras, com vários empregados ao meu serviço de modo que tirei o Claudio do hotel e trouxe-o comigo para aqueles luxos e ao meu hermanito, como nos tratávamos um ao outro, instalei-o no primeiro andar e divertimo-nos imenso nos intervalos das questões literárias. Buenos Aires é uma cidade extraordinária, claro que tínhamos de ir ao restaurante de Bioy
(quer dizer onde Bioy comia)
ou ao café de Borges, ou a não sei quê de Sabato, só faltou que nos oferecessem a onda que muitos anos antes Alfonsina Storni tinha escolhido para se suicidar, tivemos noites de tangos aos molhinhos e almoços nas enormes tascas da Boca, com todas aquelas equipas de futebol nas paredes, Boca Juniors, Independiente, San Lorenzo de Almagro, Estudiantes, etc., visitámos o hospital onde Maradona estava internado
(visitámos por fora, claro)
com centenas e centenas de adeptos em frente, acho que mais milhares que centenas, demorámo-nos nas excepcionais livrarias da cidade
(nunca vi livrarias tão luxuosas, bonitas e confortáveis)
só nos faltou passear a cavalo e jogar polo, andámos pela Universidade, enorme, com um aspecto de arquitectura salazarista, só que imensa, esmagadora, com milhões de colunas e pórticos
(aqui estou a exagerar um bocadinho)
onde fui feito Professor Honorário e me entregaram um diploma majestoso, regalaram-nos com jantares óptimos em casas estupendas
(em casa da Senhora que herdara a grande editora Sudamericana, por exemplo)
com empregadas de farda, crista e luvas brancas, sem mencionar os astros literários locais, eu que em geral não tenho paciência para astros locais fui simpático para todos eles o que me valeu
(e ao Claudio)
pilhas de livros entusiasticamente dedicados, andámos por tangos e milongas, foi um fórróbódó de alto lá com o charuto porque a literatura e Carlos Gardel não se dão nada mal, palavra de honra, ainda para mais já vínhamos com o balanço da Colombia, País de que gosto imenso
(gosto imenso da América Latina, sinto-me tão bem lá e as pessoas são encantadoras, o problema é a violência mas algum defeito aquilo tinha que ter, estar sempre a mudar de rua para não levar um tiro o que tem de especial, o editor do Claudio em Bogotá passava a vida a ser raptado o que era um bocado monótono e depois era preciso pagar mas a gente não se zangava com ele porque era uma pessoa encantadora embora cada vez mais pálido e aflito)
ou seja ao longo destes anos partilhei com o Claudio uma existência de emoções, surpresas e alegrias, no Chile, por exemplo, adiante, para encurtar razões gostava de tornar a ir contigo, rapaz, num periplozinho idêntico, de tornar a ouvir o teu riso grosso ao meu lado, de nos sentirmos felizes não sendo nenhum de nós especialmente alegre mas lá nos adaptamos, não é, lá nos adaptamos, de modo que andava a pensar nisso quando me telefonaram a dizer que morreste. Não imaginas a quantidade de tempo que fiquei quieto, a contemplar o papel branco na mesa. Agora no México achei-te melancólico e inquieto, distante, cansado, e vim de lá a pensar muito em ti, amigo, que é uma palavra que não digo muitas vezes. Amigo. Sempre foste um homem complexo, por vezes contraditório, por vezes imprevisível. Ou seja, somos um bocado parecidos. E gostava de ti, gosto de ti, mesmo da tua ironia, da tua ocasional ferocidade. Nada é fácil, não é, tudo é excepcional. A tua partida, que merda, faz-me sofrer. Quero-te mais do que pensava. Se eu mandasse punha-te aqui ao meu lado, não importa onde porque nos demos bem um com o outro em toda a parte. Claudio, hermanito, se um dia destes tiveres uma horazita livre lembra-te de mim. Ainda não fomos ao Uruguai juntos, por exemplo. Pois não? Se calhar o grande Felisberto Hernández anda por lá à nossa espera e tu sempre gostaste de escritores.
(Crónica publicada na VISÃO 1352 de 31 de janeiro de 2019)